Por Diogo Spinelli
18/09/2018
Entre os dias 14 e 16 de setembro a Armazém Companhia de Teatro apresentou-se no CineTeatro Municipal de Parnamirim com sua versão de Hamlet. O espetáculo, dirigido por Paulo de Moraes, coloca em cena a versão dramatúrgica de Maurício Arruda Mendonça para a obra de William Shakespeare. A versão apresentada conserva grande parte do texto shakespeariano, mantém praticamente intacto seu enredo – havendo apenas a inversão ou fragmentação de algumas das principais cenas do texto original – e acrescenta algumas passagens nas quais reverbera um linguajar mais cotidiano e atual.
Se o conflito entre “ser ou não ser” sempre está contido em Hamlet, ainda que valorizado em maior ou menor grau a depender de cada montagem, o embate entre conservar a obra original ou acrescentar uma visão mais contemporânea à mesma parece ter permeado as escolhas dramatúrgicas e da encenação propostas na versão apresentada pela Armazém. Um dos maiores exemplos desse embate acontece antes mesmo do espetáculo ter início: ao entrarmos no teatro somos recepcionados pelas personagens em trajes de gala, que ocupam a plateia e interagem com o público, convidando-nos a tirarmos selfies com nossos celulares e postarmos as mesmas em nossas redes sociais. Apesar desse início apontar para uma possível abordagem interativa entre personagens e público, bem como uma localização temporal da ação do enredo no tempo presente da plateia, uma vez iniciada a peça propriamente dita, essas duas propostas parecem ser abandonadas e não mais retomadas ao longo de todo o espetáculo.
Do mesmo modo, se na primeira cena entre Polônio e Ofélia, esta traz uma energia contestadora que denota o pano de fundo de um empoderamento feminino, situando a personagem na atualidade, ao longo da obra parece não lhe restar nenhuma opção a não ser cumprir – e ela o faz – o papel trágico a ela anteriormente designado pela obra original. Dessa forma, aos poucos a figura de Ofélia enquanto mulher contemporânea vai pouco a pouco desaparecendo em sua trajetória de encontro ao imaginário de fragilidade icônico que envolve a personagem shakespeariana, na bela interpretação de Lisa Eiras.
Em seu livro Shakespeare nosso contemporâneo, o crítico e ensaísta Jan Kott define Hamlet como o drama das situações impostas, uma tragédia cujas personagens tem que cumprir seus papéis, ainda que não o desejem. De certa forma, esse mesmo pensamento pode ser replicado com relação à montagem da Armazém: ainda que queiram habitar o mundo contemporâneo com suas ações e discursos, as personagens parecem presas às situações impostas pela obra original. Assim, ainda que Hamlet possa em determinado momento vandalizar a fachada de Elsinore com spray, em outro, ainda traja parte de uma armadura medieval; e mesmo que Laertes porte um revolver quando de seu retorno à Dinamarca, o duelo final entre ele e Hamlet ainda parece ter que ser necessariamente traçado pelo fio das espadas.
A cenografia, por sua vez, também sugere uma aproximação com o universo contemporâneo. Se Hamlet também é uma obra sobre a representação, não é à representação teatral que a montagem da Armazém se refere, já que vemos em cena uma estrutura espelhada que lembra a fachada de um antigo cinema no qual lê-se o nome do castelo de Elsinore. A referência ao cinema é também reforçada pelas duas fileiras de poltronas que compõem a base da cenografia. A sétima arte é também evocada em cena pontualmente em algumas citações textuais da adaptação – sobretudo nas falas sobre representação – e através de projeções que ocupam toda a fachada de Elsinore e nas quais vemos a imagem agigantada do espectro do falecido Rei Hamlet, e do rio lodoso que envolve Ofélia em sua morte.
Ao adotarem uma mescla de temporalidades e de propostas de linguagem distintas (mas não necessariamente aprofundadas), a encenação e a dramaturgia do Hamlet da Armazém fazem com que o espectador nunca repouse, mantendo-se envolvido pela narrativa que se desenvolve de forma bastante objetiva pelas mais de duas horas de duração do espetáculo. Soma-se a isso a evidente qualidade técnica e artística do trabalho e dos profissionais envolvidos, sobretudo no que tange o trabalho atoral.
Ainda assim, a sensação de estar diante de proposições cênicas não completamente desenvolvidas aguça a imaginação para outros Hamlets possíveis e apontados – como aquele no qual há interação entre público e personagens, ou aquele cujas personagens e a ação estão de fato localizados no tempo presente, outro no qual o recurso audiovisual é utilizado no decorrer de toda a montagem, ou ainda um no qual o golpe de estado operado na Dinamarca ressoe de forma mais direta em nossa situação política atual etc. Isso acaba por fragilizar, de certo modo, a proposta que estamos por ver, e que parece possuir justamente na instabilidade e na precariedade sua tradução para a loucura de uma sociedade esfacelada.