O Sabor do Tempo

Por Paula Medeiros
13/01/2017

De 23 a 26 de novembro, n´A Boca Espaço de Teatros, aconteceu a temporada de estreia do “Sem Sal, Sem Açúcar”, novo espetáculo da Sociedade T (Trans), coletivo atuante em Natal desde 2013 que tem como poética o hibridismo entre as linguagens da dança, do teatro e da performance na cena contemporânea, além de um notável flerte com as artes visuais e a música, oferecendo ao público experiências sensoriais e imageticamente potentes. O novo rebento é o terceiro trabalho do grupo, fruto de meses de pesquisa do ator e diretor Moisés Ferreira que, pela primeira vez, se lança no desafio de atuar em um espetáculo solo.

Ouvi sobre o processo de criação algumas semanas antes da estreia, em uma roda de conversa entre alunxs da disciplina de Encenação IV do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, sob tutoria de Heloísa Sousa - também correspondente do Farofa Crítica - e representantes de alguns grupos da cidade. Na ocasião discutimos sobre a formação de coletivos teatrais oriundos do meio acadêmico, o que é bastante comum em Natal, e tentamos dar luz à possibilidade de permanecer neste caminho, ainda que inúmeras adversidades tentem projetar o contrário, especialmente no instante em que recebemos o diploma e pensamos “e agora?”. Me incluo na discussão, porque passei pelo mesmíssimo questionamento quando conclui o curso, há três anos.

A partir dessa provocação, Moisés - que, na ocasião, representava a Sociedade T - iniciou uma fala apaixonada sobre o ofício de ator, a sede por conhecimento, e compartilhou de suas inseguranças no instante em que se abriu para o mundo e deixou os muros da Universidade. Tendo a intuição como guia, ele se lançou a viagens, participou de oficinas, treinamentos, encontrou profissionais como Jesser de Souza (Lume Teatro), Rosa Hercoles (SP), Yael Karavan (Inglaterra) e, remexido pelas andanças, decidiu mergulhar em sala de ensaio durante horas, diariamente, num processo de autoconhecimento e disciplina, no período de aproximadamente um ano.

O fascínio pelo teatro físico com base na Mímesis Corpórea aliado a visitas a asilos da cidade de Natal e à memória do avô Luiz Antônio, trouxeram ao intérprete-criador o fio condutor de “Sem Sal, Sem Açúcar”, um espetáculo que trata da solidão do envelhecer, e cujo projeto de montagem foi contemplado pelo Fundo de Incentivo a Cultura 2015 (Fundação Capitania das Artes - FUNCARTE) e só pode estrear no final de 2016 devido ao atraso do pagamento do edital por parte da Gestão do Prefeito Carlos Eduardo. Dado importante, tendo em vista que o trabalho poderia estar circulando há mais tempo caso o prazo previsto no edital fosse cumprido.

Enquanto espectadora tenho apreço por estreias, por mais problemáticas que possam ser, porque a energia que se instaura entre o ineditismo da obra e os primeiros olhares dxs espectadores é realmente fabulosa. “Olha, está nascendo...”. Mas infelizmente não consegui assistir ao primeiro dia da temporada de “Sem Sal, Sem Açúcar”. De qualquer forma, o cheiro de novo continuava lá.

No dia 24 de novembro, me acomodei na primeira fileira e contemplei o espaço. Uma cadeira de balanço, par de chinelas, penico, porta-retrato, pisca-pisca de Natal, banquinho, saco de lixo, rádio a pilha, flores de plástico, crucifixo, bengala… uma porção de objetos simples, cotidianos, mas já carregados de inúmeras possibilidades de narrativas e memórias. Lembrei dos meus avós… não poderia ser diferente. Senti saudade.

O ator, deitado no chão. A sala envolvida em um silêncio preenchido por espectros de muitos de nossos ancestrais. Digo nossos, das pessoas que assistiam ao trabalho e também de quem Moisés carregou consigo: as senhoras do Lar da Vovozinha (um dos asilos visitados durante a pesquisa), o avô Luiz... e pra completar a paisagem, uma trilha sonora melancólica, suave, com o timbre de um rádio velho ou de um antigo toca-discos, criada especialmente para o espetáculo pela artista Joana Knobbe.

A combinação desses elementos provocou uma suspensão no tempo. E feito um alquimista, o ator deu início a sua dança, ao chamado de seus velhos, misturando harmonicamente cada ingrediente daquela composição. Aos poucos os personagens iam se revelando, sem truques, sem segredos… bem diante de nossos olhos.

Os movimentos e trajetórias repetitivos eram como uma metáfora para a memória de quem já viveu demais, ouviu histórias demais, amou e desamou demais… com muita precisão o ator manipulava suas articulações e nos dava a ilusão de ossos frágeis, quebradiços. Os gestos, mínimos, eram arrastados, pesados, lentos, os lábios inquietos e frouxos, a língua amolecida, o queixo caido...

As horas de trabalho e dedicação que o jovem ator percorreu até encontrar aquelas figuras, então, iam se tornando visíveis. Lembrei da paixão com que ele falou sobre o processo criativo e fiquei contente em testemunhar aquela experiência. Meus olhos marejaram. Me veio um trecho do livro O Profeta de Khalil Gibran:

E não é o tempo, exatamente como o amor, indivisível e insondável? Se, todavia, deveis dividir o tempo em estações, que cada estação envolva todas as estações, e que vosso presente abrace o passado com nostalgia e o futuro com ânsia e carinho. (1980, p.44)

Durante aproximadamente cinquenta minutos, creio eu, presenciamos esse abraço entre presente e passado, numa narrativa aberta a contribuição do olhar de cada espectadorx. E quanto ao futuro, desejo vida longa ao trabalho e que o Moisés de vinte e poucos anos de hoje, continue sendo esse ator apaixonado daqui a trinta, quarenta anos, em seu "Sem Sal, Sem Açúcar".

 

FICHA TÉCNICA


Direção e Atuação: Moisés Ferreira
Assistente de Direção: Heloísa Sousa
Preparação Corporal: Alexandre Américo
Provocação Cênica: Yael Karavan
Trilha Sonora: Joana Knobbe
Iluminação: Priscila Araújo
Produção: Pablo Vieira
Registro (Foto e Vídeo): André Chacon
Designer: Camila Amaral

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