Por Heloísa Sousa
29/10/2018
A multiplicidade de relações sugeridas na obra “Goldfish”, além da complexidade e densidade das questões que emergem pela fusão entre as imagens, os sons e os movimentos propostos me instiga a escrever uma crítica que se baseia na mesma dramaturgia apresentada no palco. Jean-Pierre Ryngaert, ao falar sobre o teatro contemporâneo, destaca a relação de estranhamento do público em relação às obras cênicas que se desviam das lógicas convencionais de organização, mostrando o incômodo gerado por não ser possível explicar uma obra dessas através de uma narrativa encadeada. A recepção está mais no plano sensorial, na apreensão de imagens pela memória e na possibilidade de discussões a partir de questões suscitas por tudo isso. Apesar de falar sobre o teatro, as palavras de Ryngaert podem ser relacionadas a outras criações cênicas, ainda mais em tempos intensos de hibridismos e novas possibilidades de criação a partir dos atravessamentos. Talvez, a ideia de atravessamentos seja muito pertinente para pensar esta obra que surge a partir da residência artística feita entre artistas de países diferentes, Brasil, Cuba, Argentina e Espanha. A latinidade atravessa todos esses corpos, e apesar das diferenças culturais e contextuais, existem proximidades históricas e humanas que se tornam terreno fértil para a criação.
Algumas palavras, memórias e imagens que perpassam a experiência potente de “Goldfish”.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência consiste no “uso intencional da força física ou poder, ameaçados ou reais, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resultem ou tenham grande probabilidade de resultar em ferimento, morte, dano psicológico, mal-desenvolvimento ou privação”.
A palavra agressividade, de origem latina, significaria movimentar-se para alcançar alguma coisa. O oposto da agressividade seria a apatia, a imobilidade, a ausência de força e motivação para atingir o que se deseja.
Goldfish. Palavra inglesa para peixinho-dourado. Cassarius auratus, nome científico para o mesmo peixe, que também pode ser chamado de peixe-japonês ou peixe-vermelho. É um peixe pequeno de águas doces. Costuma ser domesticado [de modo violento] em aquários pequenos para o prazer sádico de aprisionamento do ser humano. Acreditou-se durante muito tempo que era um animal com memória extremamente curta, pesquisas recentes já desmentem essa narrativa.
Na obra “Goldfish”, cada cena apresenta um corpo, uma trajetória, um repertório, as possibilidades de movimentos para cada questão levantada em um processo criativo. Em cena não vemos um trio, mesmo quando os corpos se unem amalgamados, não é um tipo de parceria ou de união onde os corpos parecem dançar a mesma coisa, quase em coro. Ao contrário disso, vemos diálogos e embates, colaboratividade e contradições nas relações estabelecidas entre os artistas em cena.
Alexandre Américo, um dos nomes mais significativos da história da dança contemporânea natalense, compõe um trabalho que se destaca na sua trajetória e apresenta outra versão dele mesmo. Percebemos um corpo mais afetado pelo outro, o que demonstra uma versatilidade de trabalho e um interesse nos processos e nas mutações. O modo como se torna visível na cena me lembra uma divindade pop. Um híbrido entre a representação de sacrifício, de enaltecimento, de prazer. Um Cristo Negro.
Luciana Croatto é uma mulher surreal. Uma das artistas inflamáveis de origem argentina. O primeiro corpo que vemos em cena, com movimentos impossíveis e uma presença marcante. Croatto dança de modo afirmativo e resistente, parece violentar a si mesma ou colocar-se em risco, como numa demonstração de sua própria força de existência. A teatralidade do corpo de Samuel Retortillo, pela expressão corporal e facial, parece nos transpor para outra qualidade de cena, onde duvidamos da dança e abrimos espaço para outras possibilidades visuais e coreográficas.
A concepção visual da obra é simples e extremamente potente. Figurinos fáceis quase como roupas de ensaio. Objetos cotidianos como lanternas, aquário, mesa. Tudo sendo utilizado dançado com maestria, sem relações excessivamente abstratas. A iluminação aparece em cena como corpo, mais do que como artifício para tornar visível, ela entra no jogo cênico como uma possibilidade para se dialogar e criar tensões entre sombras e silhuetas. A trilha sonora criada por Oliver Ortiz compõe com a criação de todos esses movimentos e imagens, sugerindo uma sonoridade inovadora, envolvente e que move até os corpos que observam a cena.
Por fim, há um jogo entre a presença e a virtualidade através da relação entre corpos que dançam no palco e corpos projetados no mesmo espaço. Um contido no outro revelam uma inseparatividade dos corpos, somos uma rede contínua de afetos em uma cadeia existencialista, onde o que ocorre em mim reverbera no outro mesmo que não haja intencionalidades ou consciência nisso. Mas, é importante destacar que mesmo com a criação de movimentos que sugerem formas diversas de se relacionar, em “Goldfish”, as singularidades são mantidas e evidenciadas. Eles dois e ela são tão distintos uns dos outros e ao mesmo tempo conseguem compor em cena de modo confluente. A arte sugerindo relações éticas, onde a expressão da diferença tornar-se espaço arriscado, mas possível de convivência.
Nas cenas onde o efeito da luz modifica nossa visão (seja por estruturas luminosas convencionais ou projeções, que também são artifícios de luz), a perda de referência da realidade, a evidência das variações de pontos de vista. Tudo é possível. Ainda não sei exatamente sobre o que fala “Goldfish”. Também não sei se deve falar de apenas uma coisa ou de várias. Não sei se devo me preocupar em entender o que se fala. Não sei se fala ou se apresenta e afeta e tudo isso já é uma fala potente por si só. Ainda não sei se o peixinho dourado no aquário era real. Espero que não.