Às vezes no silêncio da noite

Por Rafael Duarte
09/12/2016

Caetano Veloso ultrapassou pela primeira vez na carreira a marca de 1 milhão de discos vendidos quando gravou, em 1998, o hit “Sozinho”, um clássico da música romântica assinada pelo colega Peninha. A letra fala de silêncios. Silêncios que, contraditoriamente, gritam pelo autofalante da memória. Silêncios que a maioria das pessoas conhece pela sua razão social: saudade.

Em “Sem sal, sem açúcar”, terceira montagem da Sociedade T, Peninha assinaria tranquilamente a trilha sonora que, na peça, tem a rubrica melancólica e deprimida de Joana Knobbe. O espetáculo solo de teatro e dança, beneficiado pelo Fundo de Incentivo à Cultura de Natal (FIC 2015), foi apresentado em novembro, durante minitemporada, na Boca Espaço de Teatros, na Ribeira.

Em cena, do primeiro ao último ato, o bailarino e ator paraibano Moisés Ferreira, responsável também pela direção, fala de silêncios que gritam e interagem com o público. Silêncios que despertam sensações e sentimentos. E que ajudam a explicar o sucesso popular que Caetano, mesmo com a carreira consolidada desde os anos 1970, nunca experimentara até então. É que o silêncio, como a saudade, é tão popular quanto universal. E um carinho às vezes cai bem.

“Sem sal, sem açúcar” foi montado a partir de uma intensa pesquisa de campo realizada por Moisés Ferreira observando os próprios avós e, em especial, as hóspedes do Lar da Vovozinha, um abrigo de idosas na periferia de Natal (RN) que sobrevive de silêncios e de doações. A investigação é revelada em cada movimento gestual levado ao palco. É teatro e dança, melancolia e solidão, afeto e saudade.

Na primeira parte do espetáculo, o ator transforma a expressão corporal na passagem do tempo. Cada movimento em cena tem o peso de uma idade em avanço constante. Ali o silêncio fala o antes, o agora e o depois numa velocidade própria.

O corte moderno da barba e do cabelo do ator, um aparente descuido no processo de montagem, são absorvidos pelas características dos personagens que ganham vida a partir da relação do homem com o tempo. Moisés evolui e envelhece no palco.

No silêncio, a luz amarela e depressiva é acompanhante solidária, a exemplo do bule, da xícara de café, do rádio antigo que nunca traz a notícia esperada e da garrafa de álcool deixada pela metade.

O cenário do espetáculo também brinca com o tempo. A cadeira de balanço e um par de chinelo surrados são atemporais. Criado pela designer Camila Amaral, a cama desenhada a giz na parede, a exemplo da frente de uma casinha tradicional, provoca uma sensação lúdica e reforça a efeméride do tempo. 

O silêncio ganha a voz dos personagens na segunda parte da peça. É o momento em que o ator paraibano nos leva para dentro do Lar da Vovozinha para só então descobrirmos que o Lar da Vovozinha está dentro de nós. As histórias realçadas no palco se conectam com vivências narradas no dia-a-dia pelo repórter na TV, por pessoas próximas ou vividas a partir de experiências pessoais. A memória que trai é a mesma que grita em silêncio. Moisés aproxima diferenças e colore as afinidades. 

Durante aproximadamente 50 minutos, entre diálogos com o passado, lapsos de memória e silêncios, “Sem sal, sem açúcar” fala sobre viver. Ainda que a saudade seja só uma razão social e do nome fantasia a gente nem se lembre mais.  

FICHA TÉCNICA

Solo de Teatrodança “Sem Sal, Sem Açúcar”

Direção e Atuação: Moisés Ferreira

Assistente de Direção: Heloísa Sousa

Preparação Corporal: Alexandre Américo

Provocação Cênica: Yael Karavan

Trilha Sonora: Joana Knobbe

Iluminação: Priscila Araújo

Produção: Pablo Vieira

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