Sobre gerações, tradições e famílias.

Por Diogo Spinelli
18/03/2019

Julieta mais Romeu é o primeiro trabalho do Grupo de Teatro Asavessa, formado por alunos do penúltimo período do Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN.  No entanto, as origens tanto do espetáculo, quanto do grupo, remontam a um outro tempo e local: a célula embrionária da obra recém-estreada foi um dos exercícios cênicos desenvolvidos há três anos atrás, durante a primeira edição do Laboratório da Cena de Parnamirim, curso ministrado pelos Clowns de Shakespeare.

O espetáculo marca também a estreia de Paula Queiroz, integrante dos Clowns, na função da direção. Assim, com Julieta mais Romeu, Paula passa a fazer parte do crescente número de uma nova geração de encenadoras atuantes em Natal, ao lado de Quitéria Kelly (Grupo Carmin), Heloísa Sousa (Teatro das Cabras), Lina Bel Sena (Cores Teatro), Nadja Rossana (Arkhetypos) e Thayanne Percilla (Grupo Interferências).

Ao nos aproximarmos do local de apresentação do espetáculo, realizado ao ar livre, na área externa do TECESol, observamos uma grande lona circular vermelha, um pequeno palco central do qual ergue-se uma estrutura que remete tanto aos coretos das praças quanto ao balcão de Julieta, alguns cubos revestidos com tecidos coloridos e quatro gambiarras de lâmpadas que pendem do centro para as laterais do espaço cênico demarcado.  Pela cenografia apresentada, já é possível antever que a obra se utilizará de elementos do teatro popular para contar a história daquela que talvez seja a mais famosa das tragédias shakespearianas. E de fato, essa é a abordagem utilizada pelo coletivo, que transforma o trágico texto original em uma obra cômica, com toques regionalistas, forte presença da musicalidade e grande poder de comunicação com o público.

Desse modo, o Grupo Asavessa, com sua obra inaugural, se insere e dá continuidade a uma longa tradição que possui no teatro popular suas principais bases e referências. Impossível não identificar a filiação do grupo e do espetáculo aos próprios Clowns de Shakespeare, cujas obras como Sua incelença, Ricardo III e, principalmente, Muito barulho por quase nada, parecem ressoar em Julieta mais Romeu. Indo mais além nesta genealogia, é possível identificar na obra o DNA reelaborado de outra famosa adaptação deste mesmo texto: ainda hoje, o Romeu e Julieta realizado na década de 1990 pelo Grupo Galpão, aparece como uma referência inevitável quando tratamos de Shakespeare sob o viés do teatro popular e de rua.

Se na tragédia de Shakespeare as questões familiares são centrais para o desenrolar da trama, é interessante perceber no surgimento de um novo grupo essa clara filiação teatral – mesmo que, posteriormente, em algum momento seja necessário aos filhos se rebelarem contra seus pais. Da mesma maneira, também é bonito observar a colaboração de distintas gerações de fazedores de teatro da cidade na concretização de um mesmo projeto, como quando, por exemplo, é possível perceber o resultado desse diálogo na mistura de materiais e texturas que compõem os figurinos elaborados por André Martins com a consultoria de João Marcelino.

De todas as tragédias shakespearianas, talvez Romeu e Julieta seja a mais apropriada para ser montada por um grupo de jovens atores como os que vemos em cena em Julieta mais Romeu. Além dos protagonistas da tragédia serem eles também jovens, há uma certa ligeireza e precipitação nas paixões, casamentos e mortes que garantem à trama uma dinâmica que prescinde de uma grande densidade emocional para se tornar cativante. Auxilia também a montagem do Grupo Asavessa o fato de esse ser o argumento mais conhecido de Shakespeare, não sendo necessária à adaptação dramatúrgica e cênica se demorar demasiadamente na contextualização de personagens e situações, podendo se ater mais ao modo como quer atualizar/regionalizar cada uma dessas figuras e acontecimentos. Contudo, talvez ainda seja necessário aos integrantes do grupo se deterem com mais atenção às motivações que os fazem montar este espetáculo nos dias de hoje: para além de contar essa história, quais questões querem ser debatidas pelo coletivo ao levar às praças o enredo de Romeu e Julieta? Nesse sentido, a camada dos narradores/músicos parece ainda poder ser ampliada ou melhor aprofundada, a fim de que o ponto de vista e a intenção do grupo fiquem mais claros na montagem.

Tendo acompanhado o exercício inicial desenvolvido no Laboratório da Cena de Parnamirim em 2016, os ensaios abertos da obra, bem como sua estreia, é evidente o crescimento dos integrantes do Asavessa em sua primeira empreitada como coletivo teatral. Ainda há um longo caminho a ser percorrido, e é certo que nesse caminho seus integrantes passarão a ficar mais safos com a experiência que a rua irá lhes trazer. Há no elenco e no espetáculo ainda certo frescor mesclado com uma dose de ingenuidade que fazem com que, por exemplo, não sejam completamente aproveitadas algumas falas da adaptação dramatúrgica que pressupõem um maior grau de malícia de quem as diz, ou que as interferências de percurso (fogos, topadas nas ribaltas etc.) não sejam propositadamente incorporadas pelos atores durante as apresentações.

Em contraponto, há no elenco uma jovialidade, uma gana e um engajamento em estarem fazendo o que fazem, que transparece e envolve o público. Há também uma leveza e uma graça que resulta em uma atuação coletivamente equilibrada, com momentos de brilho individual, mas com grande apelo para sua força enquanto coletivo.   

Em um momento histórico nada favorável para a cultura como este no qual estamos, é preciso cada vez mais celebrar e festejar o nascimento de um novo grupo teatral na cidade, ainda mais quando este é formado majoritariamente por novos fazedores da arte teatral, e que se lançam ao desafio de levar sua arte para os espaços públicos do estado – a temporada inicial do espetáculo prevê a realização de três apresentações em praças de cidades do interior do Rio Grande do Norte.

E por falar em festejos, ainda que soe um pouco naïf frente ao contexto de polaridades político-sociais no qual nos encontramos atualmente, não deixa de ser esperançoso perceber na adaptação proposta pelo Asavessa a ideia utópica na qual, após a tragédia de Romeu e Julieta, os Capuleto e os Montéquio finalmente selam a paz entre as famílias inimigas, e passam a celebrar anualmente sua tão inesperada conciliação. 

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