Por Heloísa Sousa
16/12/2016
Muitas vezes não queremos ver a potência. Desejamos a deficiência ou a espetacularização de algum tipo de “superação” que nos torne isentos de nossas responsabilidades de convivência e interação. Às vezes, tenho medo da gente.
A Cia. Gira Dança (Natal/RN) já tem mais de dez anos de trajetória na cidade e é perceptível a clareza em sua proposta estética e coletiva, onde as necessidades especiais percebidas nos corpos não são temáticas de pesquisa, mas sim as corporalidades presentes em um grupo que se encontrou nesse tempo-espaço. Ser cego, ter paralisia cerebral, ser negrx, ser gay, ter Síndrome de Down, necessitar de cadeira de rodas, tudo isso é (ir)relevante. Afinal, todo mundo tem alguma coisa, é alguma coisa ou precisa de alguma coisa. Desde espetáculos anteriores a esse que a Cia. Gira Dança vem se expondo, nos provocando e nos inquietando - a nós, artistas – com a retomada da frase do filósofo holandês Baruch de Espinoza: “o que pode o corpo?”. Essa é a dança que eu quero ver.
As imagens de divulgação do espetáculo não me geraram grandes expectativas, nem me denunciaram grandes construções visuais em cena. Procurar comentários de quem já foi assistir também não é a melhor opção, a sensação é de que cada apresentação se organiza dramaturgicamente de um modo, a partir do encontro com a plateia e do estado energético dos intérpretes. Paciência. Tem que ir e ver.
Cheguei. Atrasou. Entrei. Sentei (nas cadeiras laterais onde eu poderia ter alguma possibilidade de interação, é claro). Inicialmente estranhei aquela posição. Confiei e me mantive. Começou. Já tinha começado.
Primeira questão. Existe um livro intitulado “Emergência – A Vida Integrada de Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares” e escrito pelo pesquisador inglês Steve Johnson, publicado no Brasil em 2003. Esse livro traz a descrição do comportamento do Dictyostelium discoideum, um organismo parecido com as amebas, um ameboide. Esse organismo apresenta um tipo de organização muito interessante e costuma transitar entre duas formações: ora eles se unem e formam um único organismo, ora eles se separam e é possível perceber que há vários deles. Um estado duplo, eles são capazes de serem unificados e múltiplos, de acordo com as necessidades do contexto em que estão. Por exemplo, quando estão diante de alguma ameaça e precisam reagir, eles se unem e formam um só, assim se fortalecem e conseguem enfrentar a situação. Do contrário, quando o ambiente torna-se favorável, eles se assumem enquanto coletivo de seres e é possível perceber que há vários ameboides juntos, eles se valorizam enquanto indivíduos singulares. Isso é o que o autor chama de “comportamento de grupo coordenado”.
Mas, o que há de interessante nisso? Nos estudos sobre a natureza, era comum pensar que os organismos sempre tendiam a organizações top-down, onde um líder é reconhecido e convocado para organizar os demais diante das situações que aparecem. O caso desses ameboides é diferente. Eles se organizam pelo modelo bottom-up, de baixo pra cima. Não tem como identificar um líder do movimento, todos reagem e se organizam, quase simultaneamente, por percepção. O autor fala que provavelmente há algum tipo de “liderança”, no sentido de que alguns desses organismos amontoados percebem determinada situação primeiramente e acabam passando a reação/informação aos demais; só que de modo muito rápido. Esse comportamento, segundo o autor, reforçaria a hipótese de Alan Turing, que em suas teorias matemáticas mostra que estruturas simples podem progressivamente desenvolver corpos mais complexos. Essas amebas apresentam um comportamento “emergente”, que não necessita da identificação de uma figura de liderança. A complexidade seria semelhante a um equilíbrio de forças, onde o risco é existente e controlável. A emergência se manifesta em uma necessidade que as unidades encontram de pensar ou se movimentar em uma mesma direção, pensando na totalidade. Essa emergência pode partir de qualquer ponto, não existe um padrão para isto.
A grande questão do autor deste livro é: como esse comportamento de “emergência” pode nos ajudar a repensar nossas relações e modos de organização? Eu não sei, não terminei de ler o livro. Mas, baseado nisso, percebi que a Cia Gira Dança, no espetáculo Dança que ninguém quer ver (2015), havia construído o que nomeie de dramaturgia das bactérias. Mas, depois fui pesquisar e vi que não eram bactérias, então eles haviam construído uma dramaturgia das amebas. Mas, na realidade, a primeira coisa que eu pensei, ainda sentada na cadeira do Barracão dos Clowns (Natal/RN), foi que eles estavam dançando a dramaturgia dos vermes. Pode parecer cruel, mas em nossa atual crise política e ética de um mundo habitado por humanos inconsequentes, ser verme é uma revolução.
O projeto Dança que ninguém quer ver patrocinado pelo Rumos Itaú Cultural 2014/2015 também produziu e lançou o documentário “O Bando” dirigido por Carito Cavalcanti (Praieira Filmes), e neste vídeo é notável o quanto essa concepção de “bando” é coerente para pensar a pesquisa do Gira Dança e o modo como eles sobrevivem enquanto sujeitos-artistas, enquanto gente. Somos um bando de bichos e esquecemos. Lembrar-se bicho é recuperar não apenas nossa capacidade de bando, mas também nossa habilidade em administrar nossos instintos, em sobreviver, em proteger a si mesmo e ao outro. Proteger ao outro como estratégia de re-existência é lutar pela perpetuação da espécie. Os animais têm poderes (potências) de voar, de correr, de lutar, de força, de sentidos, de cores, de tudo e de qualquer coisa. E a gente? O que a gente pode? Sair da couraça (des)humana é preciso.
Segunda questão. Fui convidada a interagir com a obra, pelo intérprete René Loui. Eu, que já estava com vontade de gritar faz tempo. A energia de jogo construída quase se tornou aquela formada nos estádios de futebol, onde você se excita pela exaustão e conquista do outro. E então, ele me convidou para entrar no jogo. Fiquei me perguntando por que eu – ainda quero saber a resposta. Não tinha entendido bem a sua indicação, mas pensei, vou reagir de acordo com o que eu perceber que o corpo dele vai fazer (nessas horas não dá pra ficar perguntando muita coisa). A gente foi correndo, tinha que derrubar alguém. Mas eu não era do jogo, me senti deslocada do bando, como se necessitasse de um ritual de iniciação para fazer parte de tudo isso. No jogo eu perdi, corri, corri, corri, e perdi, estava sempre atrás, sempre atrasada, faziam por mim. Eu ainda não era bando. Quando acaba minha participação no jogo, eu retorno para a minha cadeira. Sento. Adrenalina. Meu coração foi acelerado, minha respiração foi desorganizada. Demorou uns segundos para eu me recuperar e voltar a ser espectadora. O bando me contaminou com algo.
Terceira e última questão. Venho notado que alguns artistas da dança em Natal (RN) acabam percebendo como corpo apenas o organismo vivo que dança, o que acaba sugerindo uma hierarquia entre os elementos da cena. O intérprete é o protagonista e todo o resto é coadjuvante e auxiliar de suas proposições; o que acaba gerando uma estética (excessivamente) minimalista. O resultado disso é a recorrência de composições visuais semelhantes nos trabalhos de alguns grupos de dança, quando é possível extrapolar esses limites na composição da imagem. Também percebo certa recorrência da discussão sobre o balé clássico e suas imposições sobre o corpo do intérprete; mas em nosso tempo, chego a pensar que este ponto se torna irrelevante e já não é tão acessado na memória associativa de alguns espectadores. Estamos diante de outra geração de público que lida de outras formas com algumas estruturas historicamente/criativamente problemáticas na dança; portanto, talvez isso não seja mais uma referência para os novos olhares que nos veem.