Por Diogo Spinelli
15/12/2016
Debaixo da pele, apresentado recentemente no TECESol, é o espetáculo inaugural do Grupo de Teatro Eureka, coletivo que surgiu em 2014 em meio às demandas do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN. Apesar de estreante na cena teatral potiguar, o grupo já desenvolveu projetos significativos em sua curta trajetória, como, por exemplo, a realização das três edições do Circuito Teatral Escolar – iniciativa que promove intercâmbio entre escolas através das peças produzidas por seus alunos e que em sua última edição teve a participação de 30 escolas em 15 cidades do Rio Grande do Norte.
Assim sendo, a juventude do grupo (e de seus quinze integrantes) e a conexão das propostas do coletivo com o ambiente escolar são duas chaves que podem nos ajudar a situar a produção cênica do Eureka. Trata-se, sobretudo, de um teatro feito por uma equipe jovem e para um público também jovem. Nesse sentido, é muito feliz a escolha de realização da temporada de estreia de seu primeiro espetáculo no espaço do TECESol, que também carrega em sua história esse cruzamento entre educação e cultura.
Encenado a céu aberto, Debaixo da pele convida os espectadores logo em seu início a – pelos aproximados 100 minutos de duração do espetáculo – fazerem o voo de Sankofa, pássaro de duas cabeças da mitologia africana, segundo a qual para seguir rumo ao futuro se faz necessário compreender o passado. A partir de então são apresentadas pelos doze atores que compõem o elenco uma sequência de cenas que revisitam a história dos povos africanos em nosso país, desde sua chegada como escravos até os dias de hoje, nos quais as reverberações do processo escravagista ainda permeiam nossa sociedade com mais força e pregnância do que talvez gostemos de admitir.
O coletivo retoma a trajetória do negro no Brasil utilizando-se de linguagens cênicas diversas, adotando por vezes o olhar não do colonizador, mas do povo escravizado (e posteriormente, marginalizado). Se há certo didatismo em alguns trechos, é interessante notar como, de fato, personagens importantes da história brasileira como Zumbi dos Palmares e sua companheira Dandara figuram como coadjuvantes em nossos livros de história “oficial”. Apesar da multiplicidade de linguagens apresentada na obra, recorrentemente a encenação lança mão de referenciais televisivos, que aparecem tanto na emulação de um programa de variedades, quanto na reprodução de jingles famosos adaptados, ou mesmo no registro interpretativo de determinadas cenas. Se esse referencial não valoriza a crueza do tema proposto, talvez, sua utilização seja exitosa numa comunicação mais direta com determinada parcela do público escolar, caso esse seja o principal público-alvo do coletivo em suas próximas apresentações.
De modo geral, há pouca contradição nas situações apresentadas, por vezes sendo possível lê-las a partir de um viés maniqueísta que tende a simplificar a multifacetada e extensa problemática escolhida pelo coletivo como base de sua obra. Como contraponto, destaca-se de modo positivo a cena da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, na qual são expostos visual e verbalmente, os diversos e paradoxais pontos de vista possíveis de serem lançados para nosso intrincado processo abolicionista.O panorama encenado pelo grupo pretende abranger não apenas fatos históricos do período escravocrata, mas abarcar também variados aspectos que envolvam a questão do negro no Brasil desde então, sobretudo no que tange sua constante discriminação. Na tentativa de encarar integralmente uma questão de tamanha complexidade, se por um lado muitos aspectos são mencionados e questões de diferentes naturezas são trazidas à tona, por outro, não é possível aprofundar-se com a devida atenção em determinados aspectos específicos, cujo recorte poderia ser estabelecido a partir da ótica da encenação ou do coletivo. Quanto a isso, uma maior aproximação com a realidade do grupo de jovens que compõem o grupo de forma menos anedótica e mais direta seria uma alternativa possível para potencializar a parcela da encenação destinada às relações raciais na contemporaneidade.
Apesar de possuir características que deverão amadurecer ao longo da trajetória ainda iniciante tanto do espetáculo quanto do coletivo, é louvável ver o nascimento de mais um grupo teatral em nossa cidade, ainda mais quando é possível verificar a dedicação despendida por este para com seu produto artístico: dos ingressos ao programa entregue aos espectadores, passando pelos detalhes da estrutura cênica e da maquiagem, há em Debaixo da pele não apenas a história de resistência e sobrevivência de determinada etnia, mas também a gana dos integrantes do Grupo de Teatro Eureka em se fazerem vivos, presentes e atuantes, seja na sociedade como um todo, seja na cena teatral natalense em específico.
É justamente nesse sentido que, apesar de suas fragilidades, o espetáculo se potencializa. Na obra, essa força vital e coletiva – que resiste e sobrevive até mesmo à atrocidade da escravidão – se faz presente de forma potente na utilização de danças e cantos afro-brasileiros, nos lembrando da força que uma cultura carrega consigo, e de como esta, através de suas diversas manifestações, tem o poder não apenas de gritar, festejar e celebrar, mas também de atravessar períodos de extrema opressão.