Da velhice que nos recusamos a ver.

Por Diogo Spinelli
06/01/2017

[Preâmbulo crítico ou um pequeno parêntesis antes de se começar].

Antes dar início à crítica propriamente dita do espetáculo Sem sal, sem açúcar, da Sociedade T, talvez caiba realizar um pequeno prólogo, dado que em nosso ainda curto período de existência enquanto site de críticas e coletivo de críticos, essa é a primeira vez que temos a oportunidade de lançar olhares sobre uma obra na qual um de nossos parceiros está diretamente envolvido.  Sendo assim, me parece que essa é a ocasião oportuna para reafirmar uma das principais características da perspectiva de nosso coletivo acerca do fazer crítico e sua ética – ainda que já a tenhamos salientado em nosso texto de apresentação, disponível na seção “O Projeto” (http://www.farofacritica.com.br/projeto) – e que se trata justamente do fato de nós, integrantes do Farofa Crítica, sermos, em maioria, artistas de teatro atuantes na cidade do Natal/RN.

Desse modo, a escrita de nossas críticas caracteriza-se, sobretudo, por ser um diálogo entre fazedores cênicos, vinculando-se ao que Daniele Avila Small categoriza como “crítica de artista”:

A crítica de artista é um exercício de interlocução – o que deveria ser toda e qualquer crítica para começo de conversa. Um artista, criador, experiente, tem um pensamento sobre teatro, tem convicções (mesmo que porosas) sobre teatro, tem um entendimento sobre técnicas, métodos, procedimentos, estratégias. Essas ideias precisam ser arejadas, precisam circular, encontrar o outro e se pôr à prova. É preciso que haja diálogo, conversa, debate – e isso pode ser público (mesmo que de curto alcance) ao mesmo tempo que entre amigos[1].

Conforme assinalado pela autora, trata-se de uma prática de escritura crítica que não descarta a individualidade e pessoalidade de seus autores, e que possui como ideia central a constituição de um diálogo aberto entre artistas sobre os espetáculos apresentados. No caso do Farofa Crítica, e do nosso desejo de fomentar uma cultura de crítica teatral em Natal, trata-se, sobretudo, de termos como objeto de nossas críticas os espetáculos desenvolvidos por coletivos natalenses na atualidade. Assim, não desenvolver críticas das obras que porventura tenham o envolvimento de um ou mais de nossos colaboradores seria, em última instância, até mesmo incompatível com os objetivos primeiros que deram origem ao coletivo, ao site e ao projeto.

Para que possa ser possível desenvolver a crítica sem me alongar em demasia, encerrarei (por ora) essa digressão, recomendando aos interessados o ensaio citado de Daniele Small, que, de modo muito mais aprofundado do que esse pequeno preâmbulo, é mais uma porta de entrada para se entender esse novo movimento/entendimento do fazer crítico ao qual, a nossa maneira, começamos a nos vincular.

Dialoguemos!

 

***

 

Sem sal, sem açúcar é o terceiro trabalho da Sociedade Cênica Trans, coletivo criado em 2013, surgido no curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, de onde são oriundos seus quatro integrantes. Sua origem e vinculação acadêmica, bem como o gosto pelo chamado teatro de pesquisa, são duas características que o grupo conserva e valoriza ao longo de sua trajetória até o momento. Outro elemento que caracteriza a produção do grupo é o trânsito entre diferentes linguagens cênicas em seus trabalhos, na criação de territórios híbridos nos quais coabitam elementos associados à performance, ao teatro e à dança – em especial aos dois últimos, no caso de Sem sal, sem açúcar

A obra em questão trata-se do solo de Moisés Ferreira, sendo esta também sua primeira incursão na direção dentro do coletivo. O espetáculo, que nasce a partir da experiência do intérprete na observação e convivência com idosas no asilo Lar da Vovozinha (localizado no bairro de Dix-sept Rosado em Natal) e das memórias do seu falecido avô Luiz Antônio, traz à cena uma questão com a qual ainda não sabemos lidar em nossa atualidade: como encarar o envelhecimento?

Importante destacar que na abordagem da obra, não se trata de enfrentar o envelhecimento de si próprio, mas sim daqueles que vieram antes de nós, sejam eles nossos parentes ou não. Trata-se de um olhar sobre o outro.

Falando em alteridade, foi uma feliz coincidência poder ter acompanhado a demonstração Quando os subtextos são textos, de Raquel Scotti Hirson, atriz do LUME Teatro, no Tudo Amostra, evento realizado na UFRN, dias antes de assistir à Sem sal, sem açúcar. Para além das possíveis aproximações temáticas entre os dois (em sua demonstração, Raquel apresenta trechos do espetáculo Alphonsus, construído a partir da figura de seu avô, o poeta Alphonsus de Guimaraens), o maior ponto de convergência entre a demonstração e o espetáculo se dá na forte presença da técnica de mímesis corpórea em ambos. Aliás, apesar de abordarem os seguintes aspectos cada qual à sua própria maneira, a díade formada pela associação entre a técnica da mímesis corpórea e pela temática da relação direta ou indireta com os próprios avós compõe também outro espetáculo recentemente estreado em Natal: Violetas, da Cia. Violetas – que por sua vez também se vincula ao LUME Teatro, revelando uma linha de investigação que, apesar das diferenças, perpassa as três obras.

 Os corpos que envelhecem, perdem sua força produtiva, suas memórias e, em última instância, suas individualidades e histórias de vida nos são apresentados e presentificados em Sem sal, sem açúcar através da transformação corpórea de Moisés Ferreira, que com técnica apurada, vigorosa e precisa, gera um interessante movimento contrastante entre o seu corpo juvenil e aqueles das figuras idosas que retrata. Essa oposição nos é apresentada, sobretudo, na sequência inicial do espetáculo, que pode ser lida como uma referência ao percurso do processo criativo do intérprete em sala de ensaio na busca por concretizar em si mesmo o apurado da experiência vivida em sua incursão no asilo.   

Após a sequência inicial, Moisés compõe e apresenta ao público quatro figuras, ora fazendo uso dos poucos objetos que integram a cenografia para caracterizá-las, ora prescindindo desse recurso para fazê-lo. Não há alívio no decorrer de Sem sal, sem açúcar. Apesar de possuírem peculiaridades, todas as figuras têm em comum o fato de em nenhum momento aparentarem sinais de felicidade, como se, cada qual a seu modo, seguissem existindo apenas para dar conta de suas próprias existências já sem sentido. Se por um lado esse dado faz com que o espetáculo se torne mais plano, por outro, talvez seja um reflexo real da vivência do intérprete no contato com as idosas moradoras do asilo: talvez não fosse possível ser diferente. 

Sendo uma obra na qual predomina o silêncio do intérprete, cabe destacar a importância da trilha sonora desenvolvida por Joana Knobbe na condução das atmosferas do espetáculo, auxiliando a preencher de afetos a rotina de ações executada essencialmente de forma técnica por Moisés. Nesse sentido, a inclusão da fala apenas na composição da segunda figura, e no pequeno comentário do intérprete na transição que introduz a terceira delas, causa certo estranhamento na estrutura do espetáculo, seja por esse recurso aparecer tardiamente na obra, ou por ser utilizado de modo tão localizado. Do mesmo modo, os desenhos em giz na parede de fundo da cenografia – que fazem referência a um possível quarto de dormir do asilo – contrastam com as demais opções estéticas do espetáculo, talvez por possuírem uma função apenas ilustrativa e de ambiência, mas não dialogarem verdadeiramente com as ações realizadas por Moisés.

Sem sal, sem açúcar faz com que entremos em contato com uma realidade com a qual não queremos nos deparar. Ainda que não fale diretamente ao emocional do espectador, o espetáculo convida à reflexão, impelindo-nos a observar como estamos lidando com o envelhecimento daqueles que nos rodeiam, e que amamos.  

 

[1] SMALL, Daniele Avila. Crítica de artista ou O crítico ignorante 7 anos depois. In: Questão de Crítica. Vol. IX, nº67, Abril de 2016. Disponível em: <http://www.questaodecritica.com.br/2016/04/critica-de-artista/>, visitado em 28 de nov. 2016.

Clique aqui para enviar seu comentário