É possível emular convívio em experiências cênicas tecnoviviais?

Por Diogo Spinelli
20/08/2020

 

Desde meados de março deste ano vivemos uma pausa forçada em nossas rotinas devido à pandemia que assola o planeta. Passados cinco meses do início das recomendações de isolamento social em nosso país, muitos setores da economia vêm retomando suas atividades. Porém, são pouco prováveis as perspectivas de uma iminente retomada presencial às salas teatrais antes da imunização da população ou, ao menos, da descoberta de um tratamento realmente eficaz contra a doença. Impossibilitados de realizarem seu ofício, e desprovidos de políticas públicas que assegurem sua sobrevivência diante do contexto atual, artistas e grupos teatrais de todo o país vêm lançando-se na busca de criar obras cênicas que consigam transpor suas poéticas teatrais para os meios virtuais.

Na busca de fazer cruzamentos entre diversas experiências cênicas virtuais às quais tive acesso neste período – tanto como espectador quanto como fazedor – tento neste texto encontrar aspectos destes trabalhos que apontem para equivalências possíveis entre o teatro convivial (por mais que esse termo soe redundante) e as experiências tecnoviviais propostas pelos grupos. Em entrevista concedida durante a VI Reunião Científica da ABRACE, publicada na Revista Cena[1], o crítico argentino Jorge Dubatti destaca a oposição existente entre o teatro, arte iminentemente convivial, e propostas tecnoviviais como o cinema, a tv, e aquelas mediadas pelo uso das redes sociais. Mas, estando todos momentaneamente impossibilitados de experiências de convívio (teatrais ou não), e sendo a utilização de meios tecnoviviais uma necessidade dos fazedores de teatro antes que um desejo por os utilizar, seria possível identificar aproximações do conceito convivial na realização/fruição dessas obras?

Ao estabelecer as diferenças entre as experiências conviviais e tecnoviviais, Dubatti elenca alguns elementos, dentre eles a “[...] supressão do vínculo dialógico com o outro, porque o outro pode ou não estar do outro lado da intermediação tecnológica”. Transpondo essa questão para as experiências cênicas que pude acompanhar, concordo com o crítico argentino ao perceber que as obras que pressupunham alguma forma de interlocução comigo enquanto espectador necessariamente me aproximavam mais de uma experiência presencial, resultando em um maior engajamento meu com relação a elas.

Nos experimentos em que assumi uma função apenas voyeurística, dificilmente foi possível manter-me imerso na experiência por toda sua duração, seja pela facilidade de dispersão ocasionada pela situação de relaxamento de estar acompanhando a obra sozinho em casa, muitas vezes com meu celular à mão (minha culpa, eu sei), seja pela possibilidade de poder parar e rever o experimento em outras oportunidades – como acontecem com as adaptações de espetáculos promovidas pelo SESC-SP através do projeto #emcasacomSESC, que apesar de serem realizadas ao vivo, permanecem no acervo do YouTube da instituição, podendo ser revisitadas posteriormente ao momento de realização, o que as aproxima ainda mais de um produto audiovisual.

Abro aqui um parêntese para comentar que, embora não haja uma correlação direta, a maior parte das propostas que se utilizam da quinta parede (aludindo à quarta parede da convenção teatral, somada à uma quinta, formada pela tela do computador, tablet, celular ou televisão) tendem a uma utilização das plataformas disponíveis tais quais as utilizamos no cotidiano, agregando-se a isso uma interpretação de tendência mais realista. Por mais que seja instigante verificar como cada coletivo está transpondo suas escolhas estéticas para essas plataformas, a soma desses fatores pode resultar em uma maior facilidade de dispersão por parte do espectador, devido à saturação enfrentada por uma parcela do público por estar utilizando-se de modo exaustivo desses mesmos meios para a realização de aulas, cursos ou trabalho remoto.  

Uma experiência que escapa da correlação entre quinta parede e linguagem realista é aquela proposta pelo Teatro Popular de Ilhéus, em sua adaptação da obra Teodorico Majestade – As últimas horas de um prefeito, cujo subtítulo foi atualizado para A última live de um prefeito. A transposição da obra original, concebida para a rua, para o ambiente virtual do Zoom traz certo frescor a essa plataforma ao vê-la ocupada por tipos caricatos e populares, com figurinos e maquiagens extravagantes e falas em formato de cordel. Sem dúvidas, há um choque entre as linguagens, mas que resulta benéfico justamente por propiciar um afastamento do uso cotidiano da ferramenta.

A interação com o público via chat do Zoom poderia ser uma boa estratégia de interação (ainda mais tratando-se, teoricamente, da reprodução de uma live, como sugere o novo subtítulo), caso o grupo desejasse aproximar a experiência de aspectos conviviais. Contudo, acredito que houve uma opção pela manutenção de grande parte da dramaturgia original, havendo apenas uma transposição desta para o ambiente virtual, sem uma intervenção dramatúrgica que a contextualizasse de fato no momento atual. Outro aspecto interessante na obra – e que também poderia ser aproveitado em uma proposta com maior grau de interatividade – é a maneira como, apesar de haver uma dramaturgia guia, o elenco encontra-se apropriado da situação e de seus personagens, resultado das muitas apresentações do espetáculo que deu origem a esse experimento, estreado em 2006.  Na apresentação que tive a oportunidade de assistir, houve a queda da internet de um dos atores, e presenciar o jogo do elenco na resolução daquela situação foi um dos momentos mais vivos das experiências online que acompanhei até aqui.

Voltando à questão das estratégias para propiciar engajamento do público através de mecanismos que propiciem lampejos de convívio nas experiências cênicas virtuais, é bastante inventiva a proposição da Armazém Cia de Teatro em seu Parece loucura mas há método. A obra propõe um embate entre personagens shakespearianos, cabendo ao público decidir a cada rodada de duelo entre dois deles, qual deseja continuar acompanhando, e qual será eliminado. As escolhas são realizadas coletivamente e de forma democrática por todos os espectadores de cada sessão, através do recurso de enquetes disponibilizado pelo Zoom.

Ao imputar ao público a decisão sobre a continuidade da obra a ser apresentada, o experimento da Armazém necessariamente atribui ao espectador uma maior responsabilidade pelo que está assistindo e pelo que assistirá, exigindo, por consequência, uma maior atenção às cenas e aos conteúdos apresentados. Outro fator que auxilia a estabelecer um espaço de comunhão virtual é saber que se está diante de um acontecimento que se modifica a cada apresentação, a partir da ação de cada plateia virtual específica: ou seja, a proposta só se concretiza a partir da resposta do público, prescindindo dela para transcorrer. Podemos dizer que, assim como na ocasião em que os atores de Teodorico Majestade tiveram que improvisar para sanar um problema técnico, a existência de um jogo no cerne da proposta de Parece loucura mas há método também auxilia a aproximar a obra da percepção de se estar diante de um evento teatral convivial.

Apesar da estrutura do jogo proposto propiciar um maior engajamento como espectador, sua proposição e sua utilização parecem pouco contextualizadas na obra. Há assim a aproximação a um formato de reality show, no qual as escolhas sobre quem deve ou não seguir parecem baseadas unicamente em um critério de gosto, ou aparência, sem que essas escolhas sejam colocadas em questão. Tampouco é justificado dramaturgicamente o quadro de duelistas ser composto por aqueles personagens de Shakespeare especificamente. Esses fatores, juntamente com a supressão dos contextos originais dos solilóquios (e dos próprios nomes das personagens, apenas revelados quando as mesmas são eliminadas) fazem do experimento da Armazém um grande exercício atoral a partir da dramaturgia shakespeariana, mas que não estabelece um discurso próprio na obra em si.

Se em Parece loucura mas há método a relação é proposta aos espectadores enquanto coletividade, o experimento sensorial Tudo que coube numa VHS, do grupo Magiluth, aproxima-se do convivial ao propor uma relação de intimidade com o espectador. Pioneira nos experimentos cênicos online durante a pandemia, a obra explora o uso de diversas plataformas, nas quais são enviados rastros de um relacionamento amoroso que chegou ao fim. O experimento é realizado de forma individual, com um ator enviando os arquivos/lembranças para um espectador. Uma vez que tanto os espectadores quanto os atores fazem uso de suas próprias redes sociais neste processo, a proposta joga com os limites entre ficção e realidade, ainda que estes sejam estabelecidos claramente nos primeiros contatos realizados pelo ator. Mesmo que as mensagens enviadas pelo ator/personagem não se dirijam ao espectador, indiretamente ocorre uma justaposição entre a personagem a quem aquelas mensagens se destinavam e nós, que as recebemos.

Seja pela dinâmica entre as plataformas, seja pelo fato de ser realizada de forma individualizada, Tudo que coube numa VHS configura-se como uma obra imersiva, ainda que de maneira remota. A experiência apenas não se aprofunda nos aspectos conviviais por, de fato, não existir em sua estrutura brechas para a participação do público. Ainda que a todo momento estejamos recebendo fragmentos de um diálogo, somos apenas seus receptores, não havendo espaço para interlocução. Nesse sentido, a obra aproxima-se quase de um audiotour, havendo pouco ou nenhum jogo na relação entre o espectador e o ator.

 Já a viagem cênico-cibernética CLÃ_DESTIN@[2], dos Clowns de Shakespeare, obra da qual componho o elenco e fiz a assistência da direção, faz do jogo e da interação com o espectador seu sustentáculo principal. Ainda que durante o processo de criação não estivéssemos buscando especificamente a emulação de uma experiência convivial, acredito que a busca por encontrar equivalências entre o teatro e as plataformas virtuais disponíveis, somada às referências de trabalhos virtuais que começaram a surgir neste período (como o próprio Tudo que coube numa VHS), fizeram com que encontrássemos uma estrutura que propõe uma experiência de convívio possível dentro da conjuntura atual.

A jornada futurística, subversiva e latino-americana proposta pela obra inicia-se antes mesmo da hora marcada. Antes de começar sua viagem, o espectador/viajante deve preencher um formulário, seguir perfis, assistir a tutoriais e preparar a si e ao seu ambiente para a experiência que irá vivenciar. Por mais que sejam tarefas simples, há, desde essa preparação, um convite para que o espectador se coloque em movimento, em deslocamento, em ação. 

Esse convite à reativação dos corpos, às memórias e às projeções futuras, bem como à festividade, permeará todo o trajeto de cerca de uma hora, durante o qual diferentes tipos de interação são propostas aos espectadores, numa jornada que caminha do indivíduo para o coletivo. Em sua itinerância pelos aplicativos Whatsapp, Instagram e Zoom, CLÃ_DESTIN@ se propõe o desafio e o desejo paradoxal de, ao utilizar-se dessas plataformas habituais, propor usos que escapem de sua cotidianidade.       

Se há ganhos enquanto experiência convivial, essa escolha gera também algumas limitações de acesso ao trabalho, como por exemplo, o número restrito de apenas seis espectadores por sessão. Uma vez que a proposta pressupõe também um grau de interatividade com o espectador, que de antemão não sabe de que forma ela irá ocorrer, pode haver também um receio sobre desejar ou não participar da obra – muitas vezes tendo como referência a interação no teatro convivial, ainda que aqui a interatividade opere sob outros parâmetros.

Ainda que o que estas experiências possam oferecer sejam apenas simulacros do convívio, cada vez mais me interesso, como criador e espectador, por analisar e por experimentar como cada coletivo e cada artista vêm respondendo à sua maneira a essa situação que abarca a todos. Parece-me que todos juntos estamos em uma franca e ampla experimentação conjunta, na qual as estratégias encontradas por uns acabam por influenciar os demais, numa retroalimentação que em si possui em iguais medidas potência e invenção. Se ainda é cedo para pensarmos em retomar as atividades presenciais, é certo dizer que até lá continuaremos experimentando, criando, resistindo e, por que não, [tecno]convivendo de forma profícua através desses palcos virtuais. 

 

[1] A transcrição da entrevista pode ser lida no endereço: https://seer.ufrgs.br/cena/article/view/26187/15321

[2] A foto utilizada aqui e na home do site para esse ensaio pertencem a essa obra.

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