Por Farofa Crítica
05/03/2021
Nos dias 20, 21, 27 e 28 de fevereiro de 2021, Heloísa Sousa e Diogo Spinelli do Farofa Crítica ministraram a Oficina Online de Crítica Teatral, em formato virtual e gratuito, com os recursos da Lei Aldir Blanc Rio Grande do Norte, Fundação José Augusto, Governo do Estado do Rio Grande do Norte, Secretaria Especial de Cultura, Ministério do Turismo e Governo Federal. A oficina recebeu alunos de diferentes estados do país como Rio Grande do Norte, Pernambuco, Sergipe, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo. Além das discussões teóricas, fizemos exercícios práticos de escrita de parágrafos críticos a partir de duas obras cênicas: “Olar, Universo!” de Luciana Paes (SP) e “Pelo Pescoço” de Daniel Torres e Ana Claudia Albano (RN). Segue abaixo, alguns parágrafos que foram escritos e discutidos nas aulas sobre o espetáculo “Pelo Pescoço”.
A galinha mata-se pelo pescoço. Na evolução da espécie, sobrevive quem se adapta ou quem se hibridiza, a exemplo de alguns animais que assisto, rapidamente, nos documentários gratuitos do Animal Planet no youtube. Há também, os que se antropomorfizam. Seja por singularidades mitológicas, seja por um desejo ficcional, imaginário e até histórico para perpetuar a espécie. No caso, a humana. Elas, mulheres, em corpos padronizados - para esta época do agora, século XXI: branca, magra, alta, seios pequenos. Há vozes que dizem: apedrejam (ainda!). Há vozes cantadas que impõem ordens (segrega!). Há corpos que evoluem e AINDA negam a Ciência, os Direitos, as mulheres. A girafa, um animal, mamífero, sobreviveu a grandes cataclismas por causa do seu pescoço. Pelo tamanho do seu pescoço, sabe-se quem resistiria. Para a galinha, o pescoço independe da sua sobrevivência: ela é para comer. O espetáculo de Ana Cláudia Viana e Daniel Torres, “Pelo Pescoço”, une em um único corpo performático e traz a figura do corpo feminino que sofre torturas - psicológicas, fisiológicas, simbólicas. A atriz-dançarina passa a maior tempo interseccionada com a máscara. Engraçado como a máscara AINDA passa afeto. AINDA é mulher. A mulher, portanto, não está na imagem. A mulher, parece-me, é uma construção social. Portanto, o olhar que vê, que é de uma mulher, se solidariza com a obra e passa a ter cuidado com a mulher-animal. Havia outros animais possíveis, como a Loba, para lembrar a obra “Mulheres que correm com os lobos”, de Clarissa Pinkola Estés. Afirmo que, portanto, não há mudanças nesse paradigma feminino enquanto eu ver a mulher como girafa como galinha como animal. Ana insere-se no carrinho de compras. É palco, é carrinho, é uma porta utópica de saída. Mas, a mulher redesenha. A mulher em tempos circulares se constitui em um ser que ela é, ou que ela se define ser. Semelhante a mim. Demorou para ser palavra esta crítica, porque parecia não ter voz aqui. A real, é que, o eco é/foi tão grande que eu me silenciei. Agora, escrevo.
Por Maurileni Rodrigues (CE), escritora na página ColetivaCena (@coletivacena).
Logo no início, Ela posiciona um triângulo de sinalização à beira do palco, como se assinalasse “cuidado, local de risco”. Provavelmente, porque tenha morrido ali, com o rosto incógnito e o corpo exposto naquela caixa (cênica) de Pandora que subverte o mito: talvez, Pandora não tenha libertado os males para o mundo, mas os males é que tenham aprisionado Pandora na caixa. Iluminada, a caixa – com suas bonequinhas-girafas-contorcionistas entre quinquilharias – mais parece uma Guernica minimalista, depois de uma passada de aspirador de pó. Escura, desvencilha-se de Picasso para encontrar a solidão pictórica de Hooper, com luminárias e reflexos colocados como meros resquícios do mundo. Sufocada, Ela readapta o próprio pescoço, transformando-se num minotauro às avessas, feito de outro lado e de outro bicho. A Mulher-girafa lembrou-me do Homem-carneiro, personagem de Haruki Murakami. Num dos livros, para que o Homem-carneiro apareça, uma mulher precisa deixar de existir; por isso, evapora. A priori, carneiros são animaizinhos fofos, aparentemente inofensivos. Mas nunca se sabe se os males não estão entremeados na lã. A Girafa, com o pescoço longilíneo, pode avistá-los de longe, para correr ou bloquear a passagem. O desenho-sombra da Mulher-Girafa é uma Mulher-Medusa, que petrifica e tomba a porta, ou seja, bloqueia a saída, mas também a entrada. Confinada e morta, a Mulher-Girafa sente uma inédita e paradoxal liberdade. Deixa o bicho para trás e samba com uma planta na cabeça. Torna-se outro mito: Dafne, aquela que fugiu do enamorado Apolo. Fofo, carneiro, obsessivo. Ao som de “Vai passar”, a Mulher – agora Mulher e só! – cumpre a letra da música e encontra uma passagem pelas laterais. Foge, antes que o telefone toque e do outro lado esteja o Homem-Gorila, de Sérgio Sant’anna.
Por Álvaro André Zeini Cruz (SP), professor de cinema e audivisual.
23/02
23 de fevereiro de 2021, há exatamente um ano, durante o carnaval, minha avó materna teve seu primeiro surto de bipolaridade aos 61 anos de idade, os nós na garganta desataram e todo o silêncio desses anos todos foi quebrado. O silêncio de “Pelo Pescoço” interrompido apenas pela girafa de pelúcia e pelo cachorro de brinquedo fala por si só, conversa com o público de forma íntima e traz memórias muitas vezes indesejadas.
É uma pena observar a obra remotamente, visto que, pelo contador do youtube consigo ter noção de quando exatamente a experiência acaba, mas mesmo assim, mesmo nesse ambiente inóspito para os artistas de palco, a vivência é marcante e leva à diversas reflexões.
Por Alexandre Antas, ator e estudante de Teatro na UFRN.
Cabeça de Girafa que Tudo Pode
Acompanhado de músicas machistas, o público é recepcionado nas cadeiras do teatro com a cortina aberta e a bailarina localizada próximo ao lado direito. Após tentativas sem sucesso e educadas de pedido para que a música parasse de tocar, um grito forte é projetado no modo imperativo. Assim se iniciava o espetáculo “Pelo Pescoço”, com direção de Daniel Torres e performance de Ana Cláudia Viana.
Carregada de duplo sentidos e uma dificuldade pessoal de entendimento, a obra retrata uma mulher que, no começo, está com o torso circundado de correntes (não antes visível) presa a uma realidade triste e sem espaço - a sua casa? Talvez. Ficando apenas de calcinha e carregando uma cabeça de girafa em seu ponto mais alto do corpo, a personagem passa a interagir com os objetos cênicos de forma sistemática. Usando seu corpo como laboratório, a bailarina passa por diferentes experiências angustiantes que remetem aos anseios e desesperos sofridos por mulheres em situações machistas, preconceituosas, desmoralizantes e, a temática implícita da obra, o feminicídio.
Após uma reviravolta, a personagem consegue atravessar a porta do local onde está inserida, ainda que com dificuldade, coloca uma comigo-ninguém-pode em sua cabeça, calça seus saltos e dança de forma viva e com força o samba “Vai Passar” de Chico Buarque; até que se liberta dos saltos, sobe em uma bicicleta, dá voltas no palco e sai, de forma concisa, pela “coxia” e some no fundo branco do espaço cênico, em um ato - no meu ver - solene de esperança.
Por Caio Machado (PE), estudante de Jornalismo na UNICAP.
A performance de dança contemporânea e teatro “Pelo Pescoço”, da bailarina e coreógrafa Ana Cláudia Viana, a princípio parece fastidioso, mas, então, com o seu desenrolar, o grito mudo ecoa pelo espaço. A ideia para o espetáculo foi concebida a partir do feminicídio de duas mulheres no interior do Rio Grande do Norte em menos de 24 horas, mortas pelo pescoço, noticiado pela mídia local. Esse acontecimento foi o ponto de partida para que o artista visual, Daniel Torres, desenvolvesse uma personagem antropozoomórfica, a qual torna-se protagonista do espetáculo; uma cabeça de girafa acima de um imenso pescoço, ajoujados à bailarina até quase o término da apresentação. O cenário traz escolhas que remetem à opressão sobre o feminino; correntes ao redor do corpo, arrastadas pelo espaço, carrinho de feira que transmove o corpo da bailarina, pequenas mulheres com cabeças de girafa, compõem, em conjunto com a bailarina, movimentos repetitivos e espelhados, fazendo o espectador pensar quão corriqueira e continuada têm sido a opressão e a violência contra a mulher, não importando sua idade ou contexto social. A trilha sonora traz músicas com letras de cunho machista, prática ainda tão comum nos dias atuais, onde a mulher é retratada como um ser ordinário, objetificado. Alguns efeitos sonoros são extremamente incômodos, quase fazendo cair na tentação de sair do espetáculo. Entretanto, resistir é preciso, logo a porta, previamente riscada e acossada, é arrastada pela cena, um corpo lânguido e reprimido se move por cima dela, espalhando todo o seu pesar. O fim se aproxima, o dessarte, e com ele muitas ideias, percepções, incertezas que se tornaram certezas, o pensamento da urgência, incumbência, da arte feminina como meio revolucionário no tangente às relações sociais tão arcaicas.
Por Zana Venâncio (RN), licenciada em Teatro pela UFRN.
O Espetáculo “Pelo Pescoço” é um Convite
Pelo pescoço se desenha com vários elementos imagéticos, símbolos diversos que pegam pela mão do público e traçam uma bela imersão. Crua, densa, viva. A bailarina, de pé, numa sensação de quase neblina, espera pacientemente o público se instalar, um movimento cotidiano se não fosse a sutileza das canções que regem a entrada, o pedido ignorado para parar as canções que já tecem o jogo inicial do espetáculo. Um corpo preso, um silêncio esticado de tensão dança com a cuidadosa fotografia das cenas, com o arquétipo dessa mulher esticada pelo pescoço, quase muda, sufocada.
Por Amanda Majuí (RN), atriz e estudante de Teatro na UFRN.
Fotos Banner e Capa: Daniel Torres.