[O Simples Ato Infantil de Profanar]

Por Heloísa Sousa
27/08/2021

O espetáculo “Papelê – Uma Aventura de Papel” é uma das obras que compõe a programação do XIV Festival Velha Joana (MT). O espetáculo foi criado pela Téspis Cia. de Teatro, um dos grupos de teatro mais relevantes do cenário brasileiro, se considerarmos sua contínua atividade desde 1993, na cidade de Itajaí (SC). A companhia vem reunindo inúmeras obras em seu repertório que tem sido reconhecidas em textos críticos, dramaturgias publicadas, atividades pedagógicas e participações em importantes festivais. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, onde a pesquisa e a documentação das práticas dos grupos de teatro ainda necessitam de maiores incentivos, assim como as possibilidades de circulação de obras e artistas pelas nossas regiões; não é uma surpresa que eu e outras pessoas interessadas no teatro brasileiro, desconheçam a existência de grupos como a Téspis Cia. de Teatro, mesmo que estes estejam atuando a quase trinta anos. Se considerarmos a dificuldade de circulação pelas regiões Norte e Nordeste do país, esses desconhecimentos tornam-se ainda mais graves e evidentes. Por isso, reitero a relevância dos festivais de teatro, como espaços de encontro entre públicos, artistas e pesquisas diversas.

Mais ainda, destaco também a importância dos festivais e eventos virtuais que utilizam de múltiplas plataformas e canais de streaming para exibir filmagens de espetáculos ou obras que acontecem online para públicos oriundo de diversos lugares do país em simultâneo. Se os festivais de teatro, em formato online, são estratégias que ganharam expressividade durante a pandemia; é importante que se compreenda que essas ações precisam existir para além desse contexto. A virtualidade pode ser percebida como espaço único de encontro, como uma forma de burlar as distâncias, alcançar outros públicos e suscitar o desejo pela presença. Não é coerente pensar na virtualidade como uma possibilidade que irá se sobrepor aos encontros presenciais, antes disso, torna-se um lugar que elabora a imaginação e cria vínculos que anseiam pelo encontro corpo a corpo.

É nesse próprio espaço da internet que artistas e grupos têm construído seus portfólios, onde acessando sites e redes sociais somos capazes de acompanhar trajetórias. Passei algumas horas imersa no site da Téspis Cia. de Teatro, conhecendo seus trabalhos, escritos, projetos e colaboradores, e destaco aqui uma iniciativa interessante do grupo em deixar disponível no site, a filmagem completa de espetáculos que não mais integram o seu repertório ativo. Muitas obras teatrais, com relevância histórica, não se perdem em registros arquivados em mídias não mais acessíveis.

Voltando a obra, “Papelê – Uma Aventura de Papel” é um espetáculo criado em 2021, no formato de teatro filmado e que se direciona ao público infantil. Em cena, duas atrizes e um ator se dividem em personagens que manipulam diversos objetos feitos de papel ou papelão, construindo brinquedos, narrativas, situações, imagens, figuras e outras possibilidades com essa materialidade simples e cotidiana.

A dramaturgia se constrói em um encadeamento de situações que se conectam pela própria materialidade, que na obra, acaba ganhando centralidade. As pequenas narrativas vivenciadas pelos atores e pelos bonecos manipulados não se concluem como histórias convencionais com início, meio e fim; ao invés disso, parecem estimular mais o próprio ato da imaginação e a elaboração de afetos e sensorialidades a partir das imagens postas. Os objetos são manipulados em cena com a mesma lógica das ações lúdicas evocadas pelas crianças ao deslocar o uso convencional do objeto para torná-lo quaisquer outras coisas que não aquilo ao qual foi destinado. O ato da imaginação cria paralelos entre formas, cores e linhas; e rapidamente, aliado à própria ação de experimentação, o corpo consegue trazer outros sentidos para aquele objeto. Isso é o que o filósofo italiano Giorgio Agamben chamaria de profanação, ao tentar comparar essa ação lúdica própria infância, como uma prática de usos não ortodoxos das materialidades e dos dispositivos, se pensarmos em outras camadas políticas.

Nesse sentido, a dramaturgia do espetáculo parece se debruçar mais sobre a lógica do jogo e da exploração dos objetos do que na construção de histórias ou dramaticidades. O papel que se torna boneco, capa, monstro, bola, bicho, entre inúmeras possibilidades que quando reposicionadas no espaço e no corpo fazem surgir situações diversas. A mobilidade da cenografia colabora com a transição dos corpos em cena entre diferentes estados de jogo, sendo ainda potencializados com recursos audiovisuais de projeções que remetem ao cinema ou aos videogames, que não deixam de fazer parte do campo de interações de uma criança na contemporaneidade.

Para além da criação de vestimentas, objetos, brinquedos e outras possibilidades com o papel e o papelão, outros recursos parecem recorrentes em peças infantis que assisti nos últimos cinco anos, como a utilização do audiovisual na expansão das possibilidades imagéticas da obra, a manipulação de bonecos trazendo sensibilidade aos formatos simples, o uso contínuo da musicalidade em detrimento do uso da voz falada para construção de narrativas. Alguns desses recursos podem ser observados em obras como “Simón, el Topo” do Teatro La Plaza (Peru) e “Abrazo” do grupo de teatro Clowns de Shakespeare (RN/Brasil), ambos com críticas publicadas neste site.

A obra da Téspis Cia. de Teatro nos põe diante de uma encenação muito articulada, mas que opera nessa sucessão de situações de exploração da materialidade que parece nunca concluir alguma narrativa. Se por um lado, isso pode causar certo estranhamento a alguns públicos, por outro, parece se aproximar bastante das práticas da infância, e essa sucessão de situações podem ser percebidas como sugestões contínuas de formas de brincar, representar e experimentar. É nesses momentos que sinto falta da presença física nos festivais de teatro e da oportunidade de conversar com alguma criança sobre a obra e alcançar outras recepções que desloquem minha própria experiência diante do espetáculo.

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