Por Paula Medeiros
13/01/2017
Antes de dar início a crítica propriamente dita é importante mencionar a minha relação de afeto com o Arkhétypos Grupo de Teatro, coletivo do qual fui integrante durante os quatro primeiros anos e que, portanto, acompanhei o crescimento mais que de perto, de dentro. Esse dado é crucial, tendo em vista que o Farofa Crítica se propõe a refletir e produzir escrita a partir de uma abordagem ética da cena, considerando este espaço como uma zona de diálogo e envolvimento responsável – político, cuidadoso, honesto – com o trabalho apreciado e também com o olhar dx leitorx.
Nesse sentido, e também porque a encenação nos convoca a, tomo a liberdade de falar da emoção de assistir ao espetáculo no momento mais oportuno, às vésperas de me mudar para uma “cidade grande” em busca de um sonho, como acontece à heroína da fábula. Mas não se trata de uma mera coincidência, é bem provável que o movimento de reconhecimento literal que aconteceu comigo tenha tocado xs demais espectadorxs em outras instâncias, já que estamos falando de uma peça de cunho político, que por sua natureza nos convida a identificação e a ação – mesmo que de ordem intelectual.
A apresentação aconteceu no Barracão Clowns e abriu a “Elementais: Mostra Arkhétypos de Teatro” que aconteceu de 14 a 18 de dezembro e percorreu diferentes espaços teatrais da cidade de Natal com os cinco trabalhos de repertório do coletivo. O Arkhétypos Grupo de Teatro nasceu de um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte idealizado e orientado pelo Prof. Dr. Robson Haderchpek que, com exceção de “Fogo de Monturo”, assina a direção de todos os espetáculos que compõem a poética dos elementos: Água (espetáculo Santa Cruz do Não Sei), Terra (Aboiá), Ar (Revoada), Éter (em processo de montagem) e Fogo.
A prof. PhD. Luciana Lyra assina brilhantemente a direção e dramaturgia de “Fogo de Monturo”, trabalho que lhe rendeu premiação internacional em um Concurso de Dramaturgia em Nápole (Itália) e que é parte de seu pós-doutorado em Artes Cênicas, desenvolvido na UFRN junto ao Arkhétypos entre 2014 e 2015, ano de estreia do espetáculo que também circulou por Recife (PE), cidade natal da encenadora e da diretora musical, a cantora e compositora Alessandra Leão, cuja poesia também se destaca em meio a densidade do contexto da peça.
O espetáculo tem como força motriz a história de Fátima, uma jovem que está prestes a ser coroada Rainha do Maracatu em seu vilarejo, Monturo, e parte à capital para estudar Direito. Na universidade, o encontro arrebatador com uma Professora-poeta instiga o desejo de revolução e luta na Heroína, que acaba se envolvendo com o movimento estudantil num contexto de Ditadura Militar. Enquanto isso, o vilarejo padece com o retorno da assombração da puta Gaba Machado, morta por eletrochoques, que como o Monturo quando queima, vai aos poucos, por baixo, tomando posse dos pensamentos, sentimentos e ações dos moradores, os levando à destruição, afinal, “de tudo que já se foi, puta é assombração mais temida”.
É interessante observar que a narrativa do espetáculo cumpre rigorosamente as mesmas etapas que outras tantas histórias encontradas nas mais variadas culturas antigas, etapas estas que compõem um modelo de organização clássico a que grande parte dos pesquisadores e estudiosos de Mitologia se referem como "A jornada do Herói". No caso de "Fogo de Monturo" é a jornada da própria Fátima, que atende ao "chamado à aventura" e sai do seu lugar de conforto em busca de um desconhecido cheio de desafios, perigos, com a única certeza de que se/quando retornar ao lugar de origem estará completamente transformada.
Através de recursos épicos o espetáculo, atemporal, mais parece um retrato do pesadelo que a “puta república, selvagem, decaída” brasileira vem sofrendo em tempos de golpe. O gigante acordou e tem a cara do conservadorismo, da direita, do chicote, dos choques que, em casos extremos, são capazes de coibir, torturar e matar qualquer vida que ouse questionar, arder e incendiar livremente, como acontece ao Feminino em “Fogo de Monturo” e em quase todo lugar repleto de Fátimas, Sufocos, Mães de Branco, Mães de Preto, Professoras, sonhadoras Irenes em seus vestidos de noiva, Mulheres de Santo... figuras arquetípicas do Feminino, guerreiras, personagens marcantes na poética de Luciana e também do Arkhétypos, se considerarmos trabalhos anteriores.
O elenco é formado em sua maioria por alunxs e ex-alunxs do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN que, junto ao processo de solidificação do próprio Arkhétypos, ganharam força, maturidade e potência nesses cinco anos de trabalho, pesquisa e dedicação ao fazer teatral. Como companheira de ofício, é para mim um motivo de admiração e respeito vê-lxs em cena tão plenxs e confiantes. É perceptível que a condução e dramaturgia de Luciana, de maneira perspicaz, aproveitou ao máximo o que cada umx teve/tem de melhor a oferecer para o trabalho, pois o que se vê no palco é um elenco afinado e entrosado. Que continuem ardendo e fazendo arder assim!
“A brasa não queima a pele
O fogo não me derrete
Faísca não faz chorar
Guardo todo Fogo em mim
Para quando eu precisar
Para quando for queimar meu dia.”
(Fogo - Alessandra Leão)
FICHA TÉCNICA
Direção: Luciana Lyra
Dramaturgia: Luciana Lyra
Elenco: Aldemar Pereira, Alice Jácome, Leila Bezerra, Lucília Albuquerque, Maria Flor, Marília Negra Flor, Paul Moraes.
Arranjos e trilha sonora: Alessandra Leão e Rafa Barreto
Cenografia: Luciana Lyra e Leila Bezerra
Luz: Luciana Lyra e Leila Bezerra
Figurinos: Paula Vanina
Produção: Leila Bezerra e Paul Moraes
Execução de luz e som: Adriel Bezerra