[Caminhando em si]

Por Heloísa Sousa
05/06/2022

Se na arte da performance, o corpo do artista torna-se a própria obra com suas implicações estéticas, políticas, éticas, sociais e outras; nas palestras-performances, a narratividade de si alcança outros patamares de performatividade, deslocamentos da ficção e da elaboração do eu sempre atravessada por espaços, corpos outros e discursos que se ampliam de uma perspectiva endógena para uma reverberação coletiva. As dramaturgias no teatro elaboraram estratégias de reorganização de outros contextos, fictícios e que traziam retratos de uma comunidade em operação, desde uma abordagem naturalista ao máximo das potencialidades simbólicas. Quando a perspectiva da palestra e a performatividade atravessam também o teatro – arte porosa desde sempre e afeita aos hibridismos – o que notamos são propostas dramatúrgicas que flertam tanto com o formato ensaístico quanto com o documental. E nesse ponto, destaco que partir de si, de suas memórias e pensar no ponto de vista da autora como narradora, não traz de fato um ensimesmamento, mas uma evidência do olhar de quem cria na fronteira entre aquele que vive e aquele que representa.

Só posso dizer daquilo que sinto.

Elisa Band cria então a palestra-performance Nica durante o Laboratório Criativo “Museu, Teatro e História”, orientado por Danielle Avila Small da Complexo Duplo e que instigou ela e outras artistas na criação dessas obras apresentadas durante uma mostra virtual.

O contexto de estreia ainda é pandêmico, as medidas de isolamento social ainda interferiam drasticamente nas criações e compartilhamento das obras cênicas. As necessidades de adaptação das mediações de acesso ao teatro, provocaram os rumos das pesquisas de inúmeros artistas, tornaram as plataformas de videoconferência as novas salas de espetáculos e reorganizaram nossos olhares e as relações entre artista espectador. Nica é apresentada dentro da casa de Elisa Band, o espaço do lar torna-se cenografia e os objetos que se acumulam nos ninhos particulares de cada um – e particular de uma artista – são as ferramentas disponíveis para as criações de imagens e narrativas. O uso desse espaço, evidentemente, tornou-se extremamente recorrente nas cenas assistidas online, e apesar de ver casas e casas em recorrência, o fato da morada ser uma extensão de cada sujeito transforma a experiência em momentos únicos de convite aos interiores.

E isso se presentifica também na dramaturgia de Nica. Partindo de si, a atriz sentada diante da gente e com uma postura de diálogo sem as camadas ficcionais de personagens, vamos adentrando em tuneis subterrâneos – como os construídos pelas formigas – entre a artista, sua morada e suas memórias. As três camadas se sobrepõem, entre os tuneis nos perdemos, e não é assim mesmo o próprio fluxo do pensamento? A lógica de organização encadeada não é apenas uma estratégia artificial de elaboração de uma linha do tempo didática e por vezes, opressora? Aqui, a linha do tempo segue outros fluxos, se interrompe e salta com frequência.

A obra existe como uma ideia a ser apresentada, não representada, embora a reativação das memórias não deixe de estar no campo de uma re-apresentação. “Eu pensei numa cena assim...”, são frases possíveis nessa dramaturgia. E com esse formato de exposição vamos acompanhando e sendo guiados pela artista nesse modo de pensar uma obra. Rotas alteradas e caminhos desviantes são os termos citados por Band para nomear esses fluxos. Estamos diante da própria imprevisibilidade do texto, não há uma sequência causal que nos permita prever o que virá adiante, a rota do assunto pode ser modificada a qualquer instante em que um palavra se torna precipício e nos leva a outro momento. Nesse sentido, Band é quase como a Alice da história de Lewis Carroll, que vai caindo em diversas situações sem perceber, despencando e se transformando drasticamente com isso. Mas, se na história de Carroll, a Alice se assusta a cada queda e não sabe bem onde irá terminar; na obra de Band, é a própria artista que nos conduz a essa perdição. E talvez este seja o ponto que mais me atravessa em Nica, a ênfase nas conexões e abandonos que fazemos na vida como forma de estar no mundo.

É aproveitando a arquitetura de sua própria residência com seus orifícios para deslocamentos e acúmulos, que a artista vai materializando também esses mapas, dialogando concomitantemente com os recursos do vídeo e uma exposição documental. O desvio do assunto que parece recusa do que foi dito anteriormente, na verdade é a percepção de uma nova conexão a partir de algum ponto que se destaca. Isso fica evidente quando somos conduzidos da anatomia do cavalo à anatomia da sereia percebendo o que desvia nosso olhar. Neste ponto, qualquer coisa é possível.

Para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve.

Essa é a frase que o Gato de Cheshire diz para Alice quando ela pergunta para onde seguir, sem ao menos saber aonde quer chegar. Mas, se na lógica produtivista que vivemos, perder-se pode significar uma incompetência, na palestra-performance de Band temos um enaltecimento da deriva da memória, o que nos lembra as teorias das derivas propostas pelos situacionistas. Mas, se em contexto de pandemia, o deslocamento externo não é uma possibilidade, quais caminhos observamos aos interiores?

Para viajar, basta existir. [...] O que vemos não é o que vemos, senão o que somos.

Poetiza Fernando Pessoa ao nos lembrar o mergulho no desconhecido como uma atitude de olhar, para além do deslocamento corporal a longas distâncias.

Por fim, após falar de formigas, cavalos, sereias, corações e cardíacos, mãe, casa, fóssil, volta para mãe; Band evidencia a atitude curiosa para a elaboração de toda essa matrioska de memórias. É essa forma curiosa de se pôr no mundo que mobiliza o corpo, as ciências, os encontros, as transformações. E então, tornar esse fluxo e atitude uma estratégia de encenação e dramaturgia que apresenta uma obra em intenso diálogo com o público, apesar das imposições da virtualidade.

 

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