Tudo começa na água [ou ensaio sobre o tempo].

Por Diogo Spinelli
26/01/2017

De 14 a 18 de dezembro de 2016 ocorreu no Barracão Clowns e no TECESol a Elementais: Mostra Arkhétypos de Teatro. Tal evento reuniu pela primeira vez, em cinco noites consecutivas, toda a produção realizada até o momento pelo Arkhétypos Grupo de Teatro – coletivo fruto de um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que conta com a coordenação de Robson Haderchpek, sendo este o responsável também pela direção de quatro das cinco obras apresentadas.  A reunião de todos os espetáculos do grupo em uma mesma ocasião tornou possível ao público entrar em contato não apenas com as diferentes perspectivas adotadas pelo coletivo para sua poética e pesquisa – que possuem nos elementos da natureza e na abordagem ritualística do fazer teatral as bases para a construção de suas obras – mas, sobretudo, com espetáculos do coletivo que já não se encontram mais em repertório.

É justamente esse o caso de Santa Cruz do Não Sei, obra inaugural do Arkhétypos, que possuiu no elemento da água seu campo de investigação cênica. Tendo entrado em contato com o espetáculo pela primeira vez na Mostra – em uma apresentação quase que comemorativa, ao marcar a retomada da obra que, estreada originalmente em 2011, não entrava mais em cartaz desde 2014 e que não tem a pretensão de voltar a entrar em temporada – é impossível furtar-me do contexto não apenas da obra, como daquela apresentação específica em si. Assim, talvez estejam [con]fundidos  nesse texto tanto uma crítica de Santa Cruz do Não Sei quanto um ensaio sobre o tempo e o teatro.

Há uma estranheza e uma beleza muito peculiares quando presenciamos a retomada de um espetáculo antigo que já estava adormecido, pois esse processo ressalta aos espectadores – possivelmente de forma mais clara àqueles que sejam de alguma forma envolvidos com o fazer teatral – a particularidade fundamental que caracteriza o teatro: sua relação com o tempo. O teatro é a arte do presente por definição.  Diferente de quando assistimos a um filme de outra época ou lemos um livro antigo, assistir à retomada de um espetáculo montado anteriormente (ainda mais quando estão mantidos o elenco e as demais características de sua estreia, como no caso citado), faz com que presenciemos uma experiência anacrônica, na qual elementos de diferentes tempos se justapõem em um mesmo acontecimento que acompanhamos no tempo presente. Essa mesma reflexão sobre o tempo e o teatro me foi despertada quando tive a oportunidade de acompanhar a reestreia de Muito barulho por quase nada, dos Clowns de Shakespeare, em 2013, dez ano após sua estreia.

Na apresentação de Santa Cruz do Não Sei na mostra Elementais estavam ali, reunidos e sobrepostos, o exercício universitário juvenil e quase ingênuo, os figurinos datados (a moda e suas constantes mudanças talvez seja dos fatores que mais nos auxiliem a materializar a passagem do tempo), o texto antigo, mas permeado de intenções novas, os corpos desacostumados a realizar uma rotina de ações que por muito tempo não faziam, mas que lembravam de algum modo de já terem feito, a afinação musical que antes inexistia, a maior maturidade e astúcia para lidar com a cena conquistada pelos intérpretes com a experiência que cinco anos de vida carregam consigo, e a nostalgia de se recuperar um trabalho que inaugurou um grupo que continua ativo até hoje, mas que, estando vinculado a um projeto de extensão universitária, possui entre seus atuais integrantes poucos dos atores ali presentes.  

Essas e muitas outras camadas estavam lá, justapostas, desde o momento em que se estabelece o grande círculo formado pelos atores e pelos espectadores e no qual podemos acompanhar, como partícipes ou convidados da pequena vila de Santa Cruz do Não Sei, as histórias de pescadores e os causos contados pelos habitantes acerca da fundação daquela comunidade, e de como o mar, ao mesmo tempo em que traz sustento à vila, faz dela o lar de inúmeras viúvas – fazendo com que, apesar de suas singularidades, as histórias se espelhem e se repitam, todas partes de uma mesma e imutável narrativa de saudade, loucura e solidão.

Outro fator a ser ressaltado reside no fato de a dramaturgia de Santa Cruz do Não Sei ter sido criada a partir de histórias colhidas junto aos moradores da Vila de Ponta Negra, em Natal. A teatralização de histórias de moradores da região e a observação dos mesmos no processo de criação dos tipos interpretados pelos atores, aliadas à grande influência da cultura popular existente na obra, fazem com que sejam trazidas à cena memórias e figuras que povoam o imaginário da região, na construção de um mapa geográfico e afetivo de algumas das principais manifestações ancestrais do estado – pesquisa essa que é retomada pelo coletivo em outros de seus trabalhos, sobretudo, em Aboiá.   

Diferentemente dos demais espetáculos do coletivo, em Santa Cruz do Não Sei, seu elemento fundador, a água, aparece mais como tema do que como fonte de exploração simbólico-ritual (ainda que o faça), opção essa que parece guiar com mais força os mais recentes trabalhos do Arkhétypos. O grande enfoque de Santa Cruz do Não Sei reside na palavra – elemento narrativo que, dentre os espetáculos do coletivo, talvez seja apenas retomado em Fogo de Monturo – e na tradição oral. A palavra e a narração são os guias para que, no presente, entremos em contato com as histórias passadas do vilarejo, que nos são apresentadas em cenas quase que individuais, nas quais os atores/narradores usam de seus encantos de sereia para prender a atenção dos espectadores.  O que há de mais ritual em Santa Cruz do Não Sei é justamente o rito antigo de se contar e ouvir histórias.

E foi nesse rito que na apresentação que pude presenciar, as figuras em cena me contaram não só histórias de como o mar pariu a vila de Santa Cruz do Não Sei, mas também de como o teatro é sobre o tempo, e de como aqueles atores, há cinco anos atrás, ajudaram a parir o Arkhétypos Grupo de Teatro.

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