Ainda bem que mudou, né?

Por Diogo Spinelli
22/01/2017

Assisti ao espetáculo Jacy, do Grupo Carmin, em duas ocasiões distintas. A primeira delas foi no agora longínquo ano de 2014, quando a obra foi apresentada na segunda edição do Festival O Mundo Inteiro É Um Palco, e quando, em minha terceira visita à Cidade do Sol, a ideia de me transladar em definitivo para a capital potiguar não passava de uma probabilidade remota. Meu segundo encontro com Jacy ocorreu novamente no sábado passado, dia 14 de janeiro de 2017, quando a obra inaugurou a programação anual da Casa da Ribeira logo antes de embarcar para São Paulo, minha cidade natal, para o cumprimento de uma temporada de pouco mais de um mês no SESC Pinheiros – temporada essa que teve início na noite de ontem.

No período entre essas duas apresentações, o espetáculo participou de um grande número de importantes festivais nacionais, realizou uma temporada no SESC Copacabana, e participou da edição de 2016 do Palco Giratório, percorrendo dezesseis unidades da federação; e foi nesse período também que esse que vos escreve se mudou para Natal, na qual vivo há um ano e meio. Natal que não só abriga o Grupo Carmin, mas que é também pano de fundo e personagem de fundamental importância para Jacy.

Em seu percurso país afora, o espetáculo teve a oportunidade de acumular uma fortuna crítica bastante superior àquela que as produções natalenses estão acostumadas a possuir. Sendo assim, ao iniciar essa crítica, me peguei pensando em quais seriam os aspectos que gostaria de abordar nesse texto, a fim de versar sobre a obra sem me tornar repetitivo com o que já foi anteriormente dito. Na realidade, esse fator já diz sobre uma das grandes virtudes de Jacy: esta é uma obra que parte de uma premissa (o achado de uma frasqueira e a investigação da história de sua dona) e de estruturas cênicas que em seu todo simulam uma aparente simplicidade, mas que possui temáticas e discursos diversos entremeados de forma sutil e complexa. Isso faz com que o espetáculo possibilite a seus espectadores leituras múltiplas a partir não só do material que apresenta, mas, principalmente, de como apresenta em cena esse mesmo material.

Eu poderia, por exemplo, salientar a utilização que o espetáculo faz dos dispositivos comumente adotados pela vertente do teatro documental, e que figuram em Jacy de modo a servirem à construção ficcional da história de Jacy (a dona da frasqueira encontrada); ou de como a dramaturgia da parte inicial da obra pode revelar a um público menos acostumado ao fazer teatral os caminhos e os acasos que permeiam a criação artística. Poderia ainda evidenciar o equilíbrio e as intersecções que ocorrem entre a atuação de Quitéria Kelly e Henrique Fontes e as manipulações e inserções audiovisuais realizadas em cena por Pedro Fiuza, num trio de vetores narrativos que se unem para nos contar uma possível – e literalmente, editada – história de Jacy.

Mas para além desses fatores, o que talvez seja mais significativo a escrever sobre Jacy agora, daqui deste local do qual me cabe escrever – mesmo sendo meu olhar ainda um tanto quanto recém-chegado à capital potiguar –, seja justamente a relação entre a obra e a cidade de Natal. Em Jacy, a peça, a história pessoal [real ou ficcional] de Jacy serve como subterfúgio para que o Grupo Carmin conte a história da cidade de Natal.   

Esse entrelaçamento entre história individual e social que percorremos através do quase século de vida de Jacy (nascida nos anos 1920, e falecida em 2010) nos faz perguntar como Natal se modificou nesse período: o que mudou, e principalmente, o que ao longo dos anos, insiste em permanecer.  Essa última questão é recorrentemente trazida à tona em cena através de uma fala que se repete em momentos-chave no decorrer da encenação (como ao final da cena na qual são explicitadas esquematicamente as ligações familiares entre aqueles que há gerações ocupam os principais cargos políticos do estado do Rio Grande do Norte): “Ainda bem que mudou, né?”. Apesar de direcionado a maior parte das vezes às questões natalenses, esse mesmo questionamento amplia-se nacionalmente no espetáculo com a mudança de Jacy para o Rio de Janeiro, e sua relação dúbia frente ao que vê, lê e vivencia sobre a Ditadura Civil-Militar.

Estando em um momento pós-golpe de Estado, em um país no qual o poder repressivo das forças militares só faz aumentar exponencialmente com o apoio de parte da população, e sobretudo, em uma semana na qual estourou mais uma rebelião na Penitenciária de Alcaçuz (localizada a 20km de Natal) e na qual a população da capital potiguar foi novamente privada de transporte público após ataques e queimas de ônibus, sendo intimada a ficar em casa (relembrando o medo dos tempos de black-out  instituído na cidade durante a Segunda Guerra Mundial), cabe-se perguntar que tipo de progresso está sendo promovido, seja em Natal, seja no Brasil como um todo.  Como não evocar a interpretação de Walter Benjamin sobre a obra Angelus Novus, de Paul Klee, que encerra a dramaturgia de Jacy?

Com os predicados que o espetáculo possui desde sua estreia, somado ao amadurecimento conquistado em sua jornada Brasil afora, não há muito a ser apontado como passível de revisão e ajuste em Jacy. Quiçá, alguns pequenos cortes ou condensações dramatúrgicas – como, por exemplo, na cena entre os idosos Jacy-Homem e Jacy-Mulher, no início do espetáculo – fariam com que fosse mais objetivo o percurso que leva à questão central da obra: a investigação histórica e documental da vida de Jacy permeada pela história de Natal (ou se preferirem, da história de Natal permeada pela vida de Jacy).

Jacy faz com que, seja a partir de nosso imaginário ou preenchidos de nossas vivências pessoais, olhemos para Natal e para sua história com outros olhos, mais questionadores, e nos perguntemos: é possível manter o que precisa ser mantido e modificar aquilo que precisa ser modificado? O mesmo deve ocorrer, mas de modo ainda mais amplo geograficamente, na próxima montagem do grupo: A invenção do Nordeste. Que bons acasos e achados guiem o Grupo Carmin em sua nova investigação cênica.

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