Por Heloísa Sousa
29/11/2022
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Entre outubro e novembro de 2022, a peça “Sete cortes até você” com concepção, direção e dramaturgia de Soraia Costa esteve em cartaz no Teatro da USP na Rua Maria Antônia, na capital paulista. A peça, que foi concebida como um documentário cênico, foi também uma das obras contempladas com o Edital de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo em 2020. Esse edital, que tem revelado obras dramatúrgicas contemporâneas importantes na cidade e dado ênfase ao trabalho da escrita no teatro, ganha notoriedade não apenas pela sua singularidade ao destacar a dramaturgia brasileira, como também tem sido reconhecido pela qualidade dos trabalhos selecionados. Logo, a expectativa em torno das obras montadas através deste edital direciona nosso olhar tanto para a produção textual como para a forma como se elabora uma encenação a partir desse material. No caso de “Sete cortes até você”, tanto a dramaturgia quanto a montagem da encenação oxigenam a cena paulistana com uma obra repleta de detalhes imagéticos e de camadas narrativas que complexificam tanto a abordagem da temática afetiva quanto as discussões estéticas em torno da peças autobiográficas.
Soraia Costa traz à cena a sua própria história de quando se descobre grávida de seu filho. A descoberta da gravidez vem junto da descoberta de que ele nasceria com lábios leporinos, uma fissura labial congênita que, por vezes, pode prejudicar o desenvolvimento da fala e exigir múltiplas cirurgias na criança a fim de fechar a estrutura que nasce aberta. Acompanhamos, então, tanto a decisão da mãe em manter a gestação daquela criança, quanto todos os procedimentos que os dois passam juntos após o seu nascimento. Em cena, essa história é contada com a presença de seu filho, Valentino Manolo, atualmente com 14 anos de idade, que contracena, com a própria mãe, todo esse percurso.
A direção de arte, assinada pela própria autora da peça, articula diferentes elementos visuais que criam um espaço singular de cores e texturas que nos conduz a uma sensação de estarmos penetrando algo. Não estamos apenas imersos na história de Soraia e seu filho, mas também estamos simbolicamente dentro de suas entranhas porque as operações de corte e costura da pele apresentam um sentido real e simbólico para a narrativa. O corte, aqui, parece uma experiência física que nos permite experimentar as sensações afetivas vivenciadas pelas duas personalidades em cena, enquanto eles revivem seu próprio percurso. A mulher é cortada para que a criança nasça, a criança nasce com fissuras, a mulher é costurada para cuidar da criança, a criança é suturada para continuar crescendo. Em um abre-fecha cirúrgico, os laços afetivos vão se alinhavando com uma força peculiar e sensível.
Nas experiências com o teatro documental e autobiográfico, vem sendo comum que artistas mulheres tragam as narrativas de suas experiências com a maternidade, como nas peças “Stabat Mater” de Janaína Leite e “Mãe ou eu também não gozei” de Letícia Bassit. Mas, se nessas peças citadas, busca-se também romper com a romantização e sacralização em torno da figura materna; em “Sete cortes até você”, o vínculo estabelecido entre mãe e filho parece se tornar o centro da discussão. O que Soraia apresenta é uma trajetória de sucessivos cortes e rupturas, que vão desde as cirurgias até ao crescimento natural e consequente transformações do filho e da mãe enquanto sujeitos, que levam à formação de um vínculo afetivo singular. Digo que “Sete cortes até você” é uma peça sobre amor. Mas, neste caso, o amor não se estabelece como afeto sagrado, romantizado e moralista; ele se estabelece numa cumplicidade realista, profana, ordinária e vulgar. Se essas palavras soam pejorativas para designar a ideia de “amor”, reitero o uso delas para pensar em uma perspectiva que considera os sujeitos envolvidos na relação como vulneráveis e transformáveis. Soraia apresenta a si e ao seu próprio filho em uma abordagem humana que os aproxima de nós, espectadores, ao ponto de desejarmos aquele tipo de relação apresentada no palco. “Saí da peça com vontade de ter um filho”, disse um amigo meu em uma conversa durante um ensaio, “eu também senti o mesmo”, respondi a ele. E esse desejo não é pautado nas ilusões em torno da maternidade que desconsidera os desafios e sobrecargas emocionais que essa experiência envolve, na verdade, esse “desejar ter um filho” que a peça parece sugerir é equivalente a “desejar a experiência do amor e do vínculo” da qual todos nós somos carentes.
Acho interessante pensar no caráter performativo que essas dramaturgias autobiográficas têm alcançado, no que diz respeito a sua impossibilidade de repetição em outros corpos atores e atrizes diferentes daqueles que são os autores e autoras da obra. Enquanto material dramatúrgico, temos a produção de um material literário que não serve a reencenação. Dessa forma, a dramaturgia autobiográfica encerra seu potencial de encenação em si mesma e permanece apenas como arquivo?
Nesse sentido, o esforço de teatralizar a obra dramatúrgica, enquanto criação de representações, aparece mais nas composições das cenas em seus aspectos visuais, contrastando com a presença “real” das figuras “reais” envolvidas. Os autores e autoras da história reencenam a si mesmos para apresentar um recorte de seu passado. Assim, Soraia faz um desvio desse movimento de encenação através de uma escolha muito interessante, quando encena uma projeção do futuro a partir desses materiais biográficos. Ela encena um devir e provoca, então, uma fissura no próprio teatro documental ao gerar uma “possível realidade”, uma aposta sobre o que virá a partir do que foi vivido. E assim, explora a possibilidade desse teatro não apenas documentar um passado, elaborar um arquivo cênico, mas também fabular um futuro que nos permite rever o presente em outra perspectiva. É, inclusive, essa fabulação que fortalece a dialética da obra.
“Sete cortes até você” torna-se uma obra significativa no repertório de peças documentais e autobiográficas brasileiras, não apenas pela narrativa apresentada, mas principalmente pela condução das cenas a partir de seu potencial imagético, lúdico e experimental; valendo-se de múltiplas linguagens artísticas, da música ao audiovisual para compor sequências poéticas que contrastam com a dureza da realidade. Como quem faz uma piada antes de entrar na sala de cirurgia, não para minimizar ou camuflar a gravidade e risco da ação que irá se suceder, mas para aproveitar o momento presente e tornar o corpo consciente de sua vulnerabilidade por afetos alegres.