Por Heloísa Sousa
30/11/2022
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Em novembro de 2022, durante a programação da 6a edição do Mulheres em Cena, a bailarina e coreógrafa Vanessa Macedo estreou o espetáculo “La Mariposa”, que seguiu em cartaz numa curta temporada no Kasulo - Espaço de Arte e Cultura no bairro Barra Funda, na capital paulista.
A obra faz parte das pesquisas de Macedo sobre o que ela tem nomeado como “dança depoimento”. Diretora da Cia. Fragmento de Dança desde 2002, a artista potiguar vem investigando e criando obras em dança onde questões sobre gênero, cena documental e autodepoimento vem sendo tensionadas a partir da linguagem da dança. Se o teatro contemporâneo vem se debruçando com frequência sobre a cena documental, reposicionando lugares da narrativa, das personagens e das relações entre arte e vida através da criação de cenas pautadas em fatos, recortes ou até distorções da realidade; a dança finda por buscar reposicionar as composições de imagem e movimento a partir das mesmas questões. Perceber como a dança pode criar a partir do autodepoimento torna-se uma questão que oferece outras perspectivas à própria estética, que se apoia frequentemente em narrações de fatos e apresentação de documentos imagéticos ou materiais. Nesse sentido, há um desafio entre dançar as narrações e os documentos - assim como teatro os teatraliza - ao invés de apenas sobrepor as materialidades.
Em “La Mariposa”, Vanessa Macedo narra parte de sua própria história, desde a apresentação das mulheres que compõem sua família até seu percurso na dança. Os dois fatos se aproximam quando as questões de gênero tornam-se um fator intrigante e recorrente na vida da artista, que atravessa diretamente suas pesquisas. Nascida em uma família que está sempre parindo outras mulheres como filhas e netas, Macedo evidencia um fio criativo que vai se projetando nesses corpos. Essas mulheres que estão sempre nascendo, crescendo, buscando outros caminhos, se perdendo, compondo outras famílias, há um amálgama de gerações que condensam passado, presente e futuro. A artista aposta então na escuta de sua filha, também mulher, mas também criança. Se a mulher adulta projeta e costura planos de futuro, a menina criança tece imaginários durante o sono. Macedo, então, recolhe as descrições dos sonhos de sua filha após noites de sono e projeta os áudios enquanto dança.
A narração em off ocupa um lugar primordial na montagem. É a própria voz da Vanessa Macedo que nos contextualiza sobre sua família, suas escolhas na dança e sobre o como o nascimento sucessivo de mulheres nesse núcleo vem intrigando a artista. A sonoridade e entonação da voz da artista alcança um lugar entre a enunciação dos fatos e a confissão dos seus pensamentos aos espectadores, quase como se estivesse sussurrando coisas das quais nem ela mesma compreende em sua totalidade. Em contraposição, a narração da sua filha sobre os sonhos alcança outro lugar com menos nitidez, seja por escolha estética ou por implicações técnicas, a voz da criança exige uma outra atenção e por vezes, acaba se constituindo mais como paisagem sonora do que como uma camada de significação pelas palavras ditas. É interessante observar como o texto adentra a obra em dança, numa linguagem em que as nossas expectativas estão para longe da presença desse elemento. Aqui, o que é dito não é apenas musicalidade, mas é comunicação direta com o público e uma das formas de nos fazer acessar o autodepoimento em si.
“La Mariposa” é uma obra que materializa a pesquisa da artista na possibilidade de uma dança depoimento e que abre mais espaço para uma abordagem estética pouco explorada, quando o depoimento em si é um dos elementos cênicos centrais e condutor da dramaturgia da obra. Mas, nessa perspectiva, como o movimento do corpo se reposiciona nessa estética? Como o movimento é também parte do autodepoimento? Nessa peça, quando o corpo apresenta-se em imagem, dança como que suspendendo o tempo criando uma fricção entre o que está sendo dito e o que está sendo visto, esse gesto dançado parece ganhar uma potência singular. E quando o corpo se move dentro de códigos da dança mais comuns ao espectador, parece distanciar-se do próprio material para se aproximar de outra expectativa. O que Vanessa Macedo propõe não é da ordem da ilustração de fatos vividos ou do manifesto motivado por alguma razão sócio-política; o depoimento aqui ganha um tom confessional, no sentido da sugestão de uma intimidade, de um vínculo entre artista e espectador ao compartilhar algo de si, sem a pretensão de resolver ou impressionar, mas com o intuito de aproximar.
Fotos de Marcela Guimarães.