Por Heloísa Sousa
13/12/2022
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Em dezembro de 2022, o SESC Ipiranga (SP) recebeu uma curta temporada de apresentações da peça “Dr. Anti” da Cia. Extemporânea, atuante há sete anos na cidade de São Paulo. A peça autoral escrita por João Mostazo e dirigida pelo autor juntamente com a encenadora Inês Bushatsky, se une a um grupo de poucas peças teatrais brasileiras que tentam reelaborar a mais recente situação política brasileira através do teatro.
Foto de Lígia Jardim
A peça busca reconstruir o retrato de um núcleo negacionista. Esse núcleo é formado por três familiares e uma artista que recebem uma dupla em sua residência, Dr. Anti e sua parceira. O encontro entre todos se dá em torno de uma mesa de jantar. O “quadro da refeição” é cenário comum e simbólico de um espaço de diálogo, da troca de opiniões, da comunhão, da partilha. Atentando para o fato de que essa partilha pode derivar em dezenas de afetos diferentes, entre discordâncias, concordâncias, pactos e outras formas de aliança ou de separação. Alguns discursos vão sendo partilhados, porque são nesses momentos de comunhão que nós também nos abrimos às mudanças de percepção, aprendemos formas de ser ou reiteramos aquilo que já pensávamos. A mesa torna-se, na vida e na arte, espaço de convivência e de enfrentamento – estar diante do outro enquanto se come. E a mesa, dentro de uma residência, não deixa de simbolizar um pequeno campo de batalha, onde disputamos sujeitos e narrativas. Entendemos, dentro daquela pequena comunidade, quem está de qual lado da trincheira. Não à toa, muitas dramaturgias modernas e realistas reconstruíram esse espaço na cenografia. Em “Dr. Anti” essa cenografia reaparece, com ar meio kitsch, artificial, esverdeado e já nos avisa do jogo dialógico que estará por vir.
Mesmo que todas as personagens não tenham um parentesco explícito entre si, colocá-las ao redor de uma mesa e citar algumas como familiares, nos lembra da família tradicional brasileira e seus valores distorcidos; onde os ideais partilhados e reiterados por um núcleo é mais importante do que os laços consanguíneos em si. Uma das bases dessa ideologia de família é o aprisionamento dos gêneros em determinações biológicas e performances antagônicas entre si. Além disso, se observarmos as teorias de Friedrich Engels em “A origem da família, da propriedade privada e do estado”, o autor destaca o núcleo familiar como uma construção material, real e simbólica do nosso ideal de nação. Onde os sujeitos dessa comunidade se assumem como semelhantes e defendem uns aos outros para sua própria perpetuação. Em “Dr. Anti”, essa dimensão familiar não alcança tanto destaque, mas a transposição de uma sociedade para um pequeno núcleo simbólico faz funcionar a lógica de pensar um movimento social ou citar uma classe a partir de cinco figuras arquetípicas.
No caso dos personagens de “Dr. Anti”, o reconhecimento das figuras apresentadas é quase imediato. Mostazo faz um exercício interessante, enquanto dramaturgo, de criar tipos a partir das figuras repetidas, hipermidiatizadas e importantes para a ascensão da extrema direita no Brasil na última década. É possível ver Olavo de Carvalho no Dr. Anti e suas teorias pseudocientíficas e conspiratórias; assim como enxergamos na sua companheira-assistente, personalidades como Heloísa Bolsonaro (esposa de Eduardo Bolsonaro e que reforça um estereótipo de mulher com forte influência nas redes sociais) ou a Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos durante o governo Bolsonaro. A elite burguesa brasileira e os representantes políticos de novos partidos sensacionalistas, também são representadas nessas personagens desenhadas pelo autor.
Durante o jantar, somos servidos de uma dramaturgia que constrói um retrato puro e debochado de como enxergamos a direita brasileira com seus negacionismos e estratégias de articulação política. Só que essas estratégias são mais da ordem da elaboração de discursos facilmente reproduzíveis do que de uma mobilização real em prol de alguma transformação. Não à toa ela se pauta na virtualidade para operar transformações na realidade. O negacionismo é primordial nessa dramaturgia. Negar a realidade das coisas. Existe uma ação irracional das personagens que dissociam frequentemente forma de conteúdo. Embora esteja visível o sangue escorrendo no rosto, ainda assim acredita-se que aquilo é algo positivo porque ele é dito como tal. Ainda que seja proferido um discurso sem nenhum fundamento ou comprovação, existe um esforço inquestionável em acreditar nesse discurso que acaba por ser aceito e rapidamente reproduzido.
O que se constrói para o espectador é esse retrato bizarro, onde o ridículo e o irracional já estão postos diante dos nossos olhos desde o início, o que nos resta é apenas reiterar o quanto ele é, de fato, ridículo e irracional e neste ponto, os espectadores terminam a peça com a mesma percepção que tinham do início. Faço essa aposta na recepção do espectador que não se transforma, porque estou considerando o tipo de público que costuma frequentar os teatros e ainda mais, peças como essa, assim como suas posturas políticas. Apesar do nosso desejo, não é muito provável que um bolsonarista se desloque até o SESC Ipiranga, à noite, num final de semana, para assistir teatro contemporâneo brasileiro. E se caso isso aconteça, como ele sairá se sentindo ao final da peça?
Em “Dr. Anti”, observamos o que eu nomearia de uma dramaturgia-retrato, onde a imagem-texto é montada desde o início da peça e segue apresentando as mesmas linhas identificadas até o final dela. É possível observar como o monólogo inicial do Dr. Anti diz sobre o texto que se segue e o estilo de atuação. Isso não torna o texto, necessariamente menos potente. Meu convite aqui é para direcionarmos um olhar mais minucioso à obra da Cia. Extemporânea, justamente porque a seriedade e coragem do trabalho nos convidam a um enfrentamento com a obra, com o contexto e com a produção teatral mais ampla se colocarmos em perspectiva.
Mostazo escreve diálogos que oferecem ritmo pra encenação e uma possibilidade consistente de jogo entre os atores e atrizes; além de articular e pôr em cruzamento discursos recorrentes da direita que atacam diversos campos de conhecimento e formas de subjetividade. A encenação busca construir um jogo de contradições entre o que é visto e o que é dito, nos fazendo notar a incoerência entre prática e discurso com nitidez. Entretanto, talvez, a ideia de teatro político que nos parece tão urgente como uma ética dentro da prática artística, necessita nos expor a composição ao invés de apenas apresentar o puro retrato completo. O que nos interessaria, de fato, não é a reprodução do retrato – essa imagem que já estamos habituados a ver e criticar; mas sim, o que há por trás desse retrato – rasgar a tela do quadro, observar o que está oculto.
Mais do que assistir ao Dr. Anti manipulando um núcleo desconhecido com maestria, onde desde o início já o identificamos como “vilão” – é ele quem arrasta o corpo no prólogo – seria importante compreender como essa figura ganha força naquela mesa de jantar, como ele realmente convence e como que as pessoas entram no fluxo do negacionismo. É compreendendo como as figuras se compõem nesse cenário apocalíptico que poderíamos estar diante da possibilidade de identificar essas ascensões na realidade e rompê-las ou visualizar suas consequências. E talvez, até nos perceber com essa centelha que pode nos fazer cair na mesma armadilha, que tanto zombamos quando os outros caem.
A dita polarização política que se armou no Brasil, criou um cenário maniqueísta de bem e mal, herói e vilão, que freou alguns debates críticos e possibilidades de discussão de análises mais consistentes sobre a realidade que pudessem, inclusive, sugerir ações sociais que transformassem formas de pensar e agir politicamente. O teatro parece ter entrado nessa mesma estrutura, tornando-se ação artística de uma esquerda que se percebe intelectualmente superior e aponta o dedo para a outra metade da população que vem pensando de modo contrário a ela, designando-os como estúpidos. Isso sem se permitir compreender o que leva uma pessoa de classe baixa, operária, por vezes integrante de uma minoria, a defender um discurso que impossibilita sua própria autonomia e existência no mundo. É sem esse esforço de compreensão que a mobilização coletiva torna-se falha, antiética e infantil. Reitero aqui, que não é uma defesa das figuras de poder em seus projetos genocidas, mas uma tentativa de olhar para a população que apoia esse projeto e perceber como ela se constrói nessa incoerência e quais as possibilidades de escapar dela.
Nesse sentido, esse teatro político, que apenas apresenta um retrato já conhecido desse cenário, finda por operar um narcisismo. “Vou ao teatro para ver diante de mim a afirmação de tudo aquilo que eu já penso”. A arte elabora um contorno imagético e textual para reiterar aquilo que o espectador já sentia, já observava e já pensava. Termino a obra com a sensação de completa identificação com o discurso. Nem eu, nem a situação são postas em perspectiva ou são acionadas em sua complexidade. Esse retrato espelha minhas expectativas discursivas.
Mas, é importante destacar que Mostazo dá um passo fundamental ao criar uma dramaturgia que direciona nosso olhar para o outro lado da trincheira. Criar uma obra que nos faça observar as figuras sociais as quais temos repulsa, já é um movimento mais desafiador do que a dramaturgia que parece sublinhar a manifestação daquilo que nós acreditamos ser. Poucos dramaturgos e dramaturgas brasileiras tem se desafiado a escrever sobre o nosso atual cenário político observando a ascensão da direita; a obra da Cia. Extemporânea faz isso, assim como a encenação “Verdade” do diretor e dramaturgo Alexandre Dal Farra (SP), estreada recentemente também em São Paulo.
Temos uma tendência a não querer olhar para os nossos opostos, nossos antagonismos, como se ignorar a presença deles fossem desarticular suas operações. Quando, na realidade, a recusa cega desse antagonismo apenas desarticula qualquer possibilidade relacional e democrática (sugiro a leitura dos textos de Claire Bishop sobre o assunto). E quando falo recusa, reitero que seria o movimento de “fingir coletivamente que tal coisa não existe”, ao invés de enfrentá-la com o empenho de desarticulá-la, seja por diálogo ou por agressividade.
Mais desafiador é retirar o véu do julgamento imediato e buscar compreender as razões por trás dessas figuras antagônicas, buscando uma análise sociológica pertinente e complexa. Nesse sentido, penso que a reafirmação do Dr. Anti como um vilão elabora um movimento decrescente da personagem. Se já a determinamos desde o início e ela segue fiel aos seus próprios princípios, dramaturgicamente ela perde força. E se, ao contrário, nós do público, nos deparássemos com a possibilidade de acreditar nele? Não porque iríamos acolher o seu discurso, mas para sermos capazes de compreender, como ele, de fato, opera. Isso, a arte consegue fazer para além da filosofia e da sociologia. Trazer para o campo do afeto, a operação narrativa construída. Fazer com que eu sinta aquilo que o outro, que eu considerava contrário a mim, sente. Não para me aliar a ele, mas para entender seu mecanismo afetivo e como desarticulá-lo.
O estilo da atuação também é outra escolha determinante na recepção da peça. Com uma atuação completamente irônica, a encenação acaba eliminando qualquer resquício de seriedade que possa colocar a ironia em lugar de tensão. O deboche escrachado conduz a percepção do espectador. Não há brecha para duvidar das personagens, para ver alguma coerência nelas. Elas são ridículas do começo ao fim. O espectador torna-se julgador constante e absoluto das figuras.
Ao longo dos séculos, tanto a dramaturgia quanto outros esforços literários passaram a criticar fortemente a escrita da história como uma estratégia de poder e a organização narrativa em começo, meio e fim, como se uma sequência encadeada de fatos, de modo linear e unilateral, pudesse dar conta da nossa realidade mais rizomática. Mas, o retrato, quadro, paisagem bidimensional tão pouco dá conta disso. A ideia de composição, de reconstruir ao nosso olhar o modo como as coisas se formam e se transformam pode ser um lugar mais arriscado e necessário para a dramaturgia desse teatro político brasileiro que pretenda dialogar diretamente com nossa realidade.
O retrato é tão consistente que vários signos aparecem como elementos de cena rígidos, o copo de leite, o sangue no rosto, a salada de alface, a arma. Talvez, estejamos fortemente acostumados com a lógica do discurso instagramável. As redes sociais e o fluxo dos hiperlinks suprimiram o tempo das composições. As imagens publicitárias precisam ser fortes o suficiente para fixar em nossa mente na primeira olhada e nos fazer reproduzir. Não à toa, discussões complexas e longas sobre femininismo, lugar de fala, luta de classes, entre outras, foram reduzidas de teses e teorias extensas para frases com o limite de caracteres de um tweet e com efeito suficiente para ser repostado. A frase é dissociada do texto, reproduzida em velocidade surpreendente, o que acaba por desviar a discussão para um campo improdutivo ou ainda estacioná-lo no binariedade do certo/errado, bem/mal. Questiono-me em que medida essa velocidade de elaboração e reprodução das imagens e dos textos não vem afetando a criação e a recepção do público.
Na peça “Dr, Anti” soma-se ainda uma crítica à arte e seus projetos de criação a partir dos contextos vividos. No núcleo, nos deparamos com a personagem da artista que tenta se engajar, propor e criar algo a partir daquela situação, mesmo estando imersa no caos e sem a possibilidade de observar a realidade criticamente. E é essa figura que parece arrematar a nossa ineficiência e impotência diante do cenário, onde não sabemos como transformá-lo. Então, para que serve mesmo a arte? Para que serve essa peça que acabamos de assistir se ela é derivada de um esforço simples, alienado e inútil de reproduzir em linguagem artística uma realidade irracional e inapreensível que continua perceptivelmente irracional e inapreensível? Essa escolha dentro da obra, enquanto discurso, acaba se voltando para a própria peça; porque chegamos ao fim com a certeza de todo o absurdo da paisagem e a única coisa posta em dúvida é a própria arte, o próprio esforço daqueles artistas em fazer aquela obra. E, enquanto puro retrato, de fato, a arte reitera certa inutilidade. Mas, enquanto composição, talvez ela possa sim reconstruir afetos que nos faça perceber a realidade sob outra ótica, que outras ciências humanas não seriam capazes de elaborar por reconstrução analítica e descritiva dos fatos.
Mas, me parece que há também um lugar de honestidade nessa dúvida sobre o papel político da arte ou qualquer utilidade que ela tenha a nível social. Uma tentativa de dissociar a arte do discurso capitalista de produtividade, utilidade e serventia; faz ela também entrar em crise sobre seu compromisso ético e responsabilidade comunitária. A arte não apenas como registro, mas também como exercício de recomposição afetiva e fabulação. E se Dr. Anti pode nos inquietar ao reiterar o quadro, destaco aqui o esforço da obra em redirecionar nosso olhar e ao menos nos colocar diante do problema para que possamos, em longas conversas e sucessivos processos criativos e de pesquisa, reorganizar o teatro político brasileiro em suas emergências.