Peça para aquecer os pés [e os corações]

Por Diogo Spinelli
14/12/2022

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Acolhimento. Essa foi uma das palavras que mais ficaram presentes na minha mente e no meu corpo após assistir ao espetáculo Candeia, obra mais recente do Grupo Estação de Teatro, de Natal/RN. Não apenas porque parte da dramaturgia do espetáculo é calcada em uma história relacionada diretamente a esse termo, mas principalmente porque essa talvez seja a sensação que mais emana da obra desde seu princípio, se perpetuando até o seu momento derradeiro.

É na delicadeza de pequenos detalhes – como quando temos nossas mãos desinfectadas com álcool por uma das atrizes antes mesmo de chegarmos ao espaço cênico, ou a presença do título do espetáculo bordado em pequenas toalhas distribuídas ao público – que, no conjunto total da obra, é possível observar o zelo presente neste que é o primeiro espetáculo dirigido por Titina Medeiros.       

Apesar de ser apresentada em espaços abertos, o que poderia pressupor uma encenação mais expansiva e para públicos mais volumosos, Candeia é uma obra íntima, realizada para poucas pessoas por sessão. O que ocorre é que a relação com os elementos da natureza é um dos pilares centrais da obra. Ao ser apresentada ao ar livre e em áreas próximas a árvores, como foi o caso da sessão que pude acompanhar, essa relação não é apenas valorizada, mas pode ser também de certa forma vivenciada pelo público presente.

A estrutura cenográfica do espetáculo evoca a ambiência dos alpendres, dos terreiros ou quintais – lugares localizados numa zona entre o público e o privado, nos quais pratica-se não apenas a sabedoria das ervas, mas uma série de conhecimentos advindos dos cruzamentos realizados em nosso continente e que resultaram em religiosidades afro-ameríndias que acessam o divino de forma sincrética e popular.

É nesse local, a um só tempo místico e mundano, que nos encontramos com quatro benzedeiras que vamos conhecendo pouco a pouco, na medida em que acompanhamos o modo como cada uma se relaciona com o mundo e como elas se relacionam entre si, em situações que também pendulam entre o sagrado e o terrenal. Essas contradições humanas fazem com que as cativantes figuras criadas pelas quatro atrizes em cena (Ananda K, Manu Azevedo, Múcia Teixeira e Nara Kelly) ecoem afetos vinculados a avós, tias, benzedeiras e outras figuras que povoam nossa memória coletiva.

 

 

Com relação à atuação, é interessante perceber como cada atriz acessa – ou nos dá a ver – sua personagem de um modo bastante particular, sem que exista a tentativa de uma uniformização entre os registros de interpretação adotados na obra.  Ainda assim, esses diferentes níveis de teatralização adotados pelo elenco de alguma forma complementam-se e harmonizam-se no todo, acabando por ressaltar as características próprias de cada uma das quatro figuras, de modo que todas nos pareçam críveis e reconhecíveis.

Por sua vez, a dramaturgia de Candeia é tecida de modo que não seja apresentada ao público – ao menos não de início – nenhum tipo de situação dramatúrgica ou cênica que sugira um desenvolvimento dramático convencional. Esse fato aproxima o texto e a encenação do que seria a fruição de um encontro real, como se o fato de entrar em contato e conhecer aquelas figuras já bastasse, por ser justamente essa ação o acontecimento [teatral] em si. Essa opção me fez recordar as muitas vezes quando, nas minhas pesquisas, entrei em contato com mestras e mestres da cultura popular, com os quais a relação se dá justamente através da escuta de suas histórias, de suas experiências de vida. Nesse sentido, Candeia é uma obra que bebe muito da tradição oral, possuindo na palavra e na relação direta com o público suas principais forças.

Dessa maneira, no momento em que o relato da memória de uma das personagens é encenado de forma dramática, há na obra uma mudança na linguagem estabelecida até então. Essa variação, apesar de não chegar a ser uma ruptura, causa certo estranhamento, talvez justamente porque esse momento de certa forma nos faz recordar de que estamos diante de uma obra teatral, e não da realidade.

É curioso perceber como, por mais que haja construções corporais bastante teatralizadas como aquela proposta por Ananda K, parte do encantamento proveniente do jogo cênico proposto por Candeia resida nessa mescla entre representação e realidade: há quase que uma predisposição em querer acreditar naquelas figuras, em seus poderes curativos e em suas histórias, seja pela maneira como somos recebidos, seja por um reconhecimento afetivo com o que nos é mostrado, ou ainda porque nos sentimos, de alguma forma, cuidados por elas.

Em uma de suas primeiras falas, é a personagem de Ananda que nos relembra que para que as simpatias praticadas ali funcionem, é preciso ter fé, é preciso acreditar.  Penso que essa fala é uma chave com a qual a obra nos convida a acreditar na potência do encontro que nos é proposto. E desse modo, se estivermos dispostos a firmar esse pacto, Candeia tem a potência de converter-se, ela mesma, em um rito de cura e renovação.

 

 

crédito das fotos: Mylena Sousa.

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