Por Heloísa Sousa
30/01/2023
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Em janeiro de 2023, duas apresentações da peça teatral “Ubu: O que é bom tem que continuar” realizadas no Tecesol, abrem a temporada do teatro natalense deste ano. A peça dirigida por Fernando Yamamoto e com Rodrigo Bico, Paula Queiroz, Caju Dantas, Diogo Spinelli e Déborah Custódio no elenco, é uma parceria entre três grupos da cidade: Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, Grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias e Grupo Asavessa.
O Clowns de Shakespeare, um dos grupos de teatro profissional ativo mais antigos do Rio Grande do Norte, vem de uma tradição de se associar a diferentes diretores teatrais para compor os espetáculos de seu repertório. Recentemente, Fernando Yamamoto, vem assumindo a direção do grupo com mais frequência, como em “O Capitão e a Sereia” (2009), “Tubos de Ensaio” (2018) e “Fronte[i]ra | Fracas[s]o” (2022). Se por um lado, a associação com diversos diretores constrói uma versatilidade nos atores e atrizes do grupo e uma expansão na sua visibilidade, por outro, recai em uma fragilidade da construção identitária do coletivo quando se percebe sem a possibilidade dessas associações (Diogo Spinelli, um de seus integrantes, analisa esse percurso e suas implicações na pesquisa “O teatro de grupo e a relação com encenadores convidados na formação, profissionalização e manutenção do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare” UNESP, 2016). Dessa forma, a parceria com outros dois grupos para a criação de seu novo espetáculo é uma escolha que faz parte do seu modus operandi e, ao mesmo tempo, revela uma estratégia de resistência do teatro de grupo natalense ao tentar manter sua produção mesmo sem nenhum tipo de incentivo financeiro privado ou público e ainda diante de certa crise do teatro de grupo no Brasil.
A escolha pela montagem do texto teatral “Ubu Rei” parece óbvia se observarmos a atual conjuntura política do Brasil com a ascensão da extrema direita e a consolidação do Bolsonarismo. Mesmo com a eleição do atual presidente Luís Inácio Lula da Silva, ainda estamos vivendo as consequências do projeto fascista e genocida que o antecedeu, assim como não deixamos de estar convivendo com uma massa de apoiadores e articuladores dos golpes fomentados pelo antigo governo. “Ubu Rei ou Os Poloneses” é uma dramaturgia escrita pelo francês Alfred Jarry e apresentada pela primeira vez, na França, em 1896, quando o autor tinha, então, 23 anos de idade. A peça original é uma construção satírica sobre figuras políticas autoritárias, onde Jarry delineia uma estética grotesca tornando-se importante representante desse formato. Em uma Europa marcada por encenações naturalistas e observando crescer a guinada simbolista com alguns autores e encenadores, Jarry cria uma encenação impactante ao mostrar o autoritarismo e a corrupção com uma linguagem escrachada, com exagero visual e acumulando todas as atrocidades possíveis nas mesmas personagens a fim de desmoralizar certas figuras políticas. A peça, nitidamente, recupera a história de “Macbeth” escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare em 1606; na proposta de Jarry, Pai Ubu prepara um golpe contra o Rei da Polônia a fim de tomar seu lugar. Com apoio da Mãe Ubu e de alguns outros serviçais, ele instaura um governo corrupto, violento e imoral e resiste contra as tentativas de queda até o limite de ver sua vida ameaçada.
Coroação de Pai Ubu e Mãe Ubu. Foto de Damião Paz
Na versão dirigida por Yamamoto, algumas adaptações trazem o Pai Ubu para um contexto menos monárquico e mais atualizado, com cenas de um plebiscito ou com roupas mais burguesas e contemporâneas. A peça é um espetáculo de rua, com uma configuração circular e uma cenografia simples e articulável, acompanhado de uma variação de objetos menores e manipulados para criar imagens e outros espaços na cena. A imaginação do público é solicitada continuamente, como em uma prática teatral artesanal onde o faz-de-conta elabora um jogo de comunhão com o espectador. Vemos os espaços surgirem e se transformarem diante do nosso olhar, estimulados pelo modo como os corpos se movem, se sentam ou interagem. Se o uso dinâmico dos objetos compõe a magia teatral da obra, nesse caso, ela também revela um pensamento cenográfico mais pautado nas condições econômicas da produção teatral natalense do que em uma pesquisa sobre formas de recriar o espaço de acordo com o conceito proposto pela encenação.
Se nessa obra, as imagens propostas pela cenografia são secundárias, é porque a peça apoia sua experiência cênica no elenco. O jogo entre os atores e as atrizes determinam o ritmo da peça, instauram as personagens pela corporalidade do elenco e tornam a apreensão da narrativa o foco da obra. A grande sacada da dramaturgia escrita por Alfred Jarry em sua época, foi a opção por delinear essa estética grotesca, as primeiras montagens da obra sugerem um Ubu com barriga imensa, uma espiral desenhada no centro e uma cara horrenda. A personagem faz merda constantemente e tem uma oratória totalmente desarticulada e descompromissada com qualquer viés político, apesar de ainda assim ocupar o posto mais alto dessa hierarquia. Na versão dirigida por Yamamoto, a caricatura parece ser uma estratégia de atuação adotada; mas esta não se faz pelas aparências corporais (como é comum em montagens de Ubu Rei), mas sim pela corporalidade, recorrendo a um modo caricato, exagerado e desconcertado de atuar que nos aproxima de abordagens clownescas ou do teatro popular e de rua. Essa escolha abre mais espaço de trabalho para o elenco. Paula Queiroz atua uma Mãe Ubu com maestria de variações entre a seriedade e o exagero em uma de suas atuações mais expressivas. Sua Mãe Ubu é visivelmente mais sádica do que a original, se aproximando mais da Lady Macbeth do que da versão proposta por Jarry; propondo uma figura feminina com maior atuação na articulação política violenta do protagonista. Em contrapartida, o Pai Ubu de Rodrigo Bico parece mais “simpático” do que o original, uma versão não apenas violenta, mas também estúpida e em certa medida, carente e com muito receio de perder seu posto. Essa escolha de encenação faz o espectador ter mais abjeção pelo sistema armado para manter Pai Ubu no poder, do que exclusivamente pela personagem em si. Quase como se ele fosse um articulador equivocado de tudo, que não tem tanta perspicácia quanto parece. Diogo Spinelli faz dupla com Déborah Custódio e atuam serviçais do Rei que o auxiliam em seus projetos deturpados, ao mesmo tempo em que cobram suas parcelas de recompensa pelo trabalho corrupto.
Paula Queiroz interpreta Mãe Ubu. Foto de Damião Paz.
Destaco aqui, o trabalho de atuação de Caju Dantas que interpreta o Rei deposto no início da peça. Um ator jovem contracenando com um dos atores mais experientes da cidade em uma disputa velada pelo trono, interpretando personagens, possivelmente, com idades invertidas. Caju consegue construir a presença do Rei em um momento curto da encenação, com destaque suficiente para que sua queda seja notória como um golpe de Estado e não apenas um assassinato. Em seguida, o ator assume uma sequência de papéis terciários que servem a encenação, mantendo caricaturas singulares para cada uma, marcando suas presenças na memória do público, sem disputar protagonismo. Reitero que um dos aspectos mais interessantes desse trabalho teatral seja a possibilidade de três atores e duas atrizes variarem entre diversos personagens em uma peça longa, com o desafio de construir muita transformação espacial e temporal em cena; sem que se perca o arco narrativo do Pai Ubu.
Caju Dantas interpreta o Rei da Polônia. Foto de Tiago Lima.
Talvez, a principal questão aqui seja analisar a dramaturgia original de Ubu Rei, a adaptação feita pelos grupos e a escolha, específica, pela montagem desse texto e sua inserção na ideia de um teatro político.
O sociólogo francês Michel Foucault escreveu um texto curto intitulado “Terror Ubuesco”, publicado junto com a tradução da peça feita por Bárbara e Gregório Duvivier e lançado em 2021, no Brasil. Foucault sugere o termo ubuesco como sinônimo de grotesco, pensando em uma estética de terror que maximiza “os efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz”. O pesquisador identifica essa abordagem não somente como um efeito teatral, mas como algo produzido dentro da própria máquina política real; a figura horrenda, abjeta, violenta, escrachada e ridícula é fundamental para criação de uma “soberania arbitrária”. Ao delinear esse grotesco na política na forma teatral, Foucault identifica que Jarry poderia almejar o seguinte objetivo:
“Mostrando explicitamente o poder como abjeto, infame, ubuesco ou simplesmente ridículo, não se trata, creio, de limitar seus efeitos e descoroar magicamente aquele a quem é dada a coroa. Parece-me que se trata, ao contrário, de manifestar da forma mais patente a incontornabilidade, a inevitabilidade do poder, que pode precisamente funcionar com todo o seu rigor e na ponta extrema da sua racionalidade violenta, mesmo quando está nas mãos de alguém efetivamente desqualificado”.
Se a peça tem alguma temática política, não é possível evitar que o público faça associações diretas com o contexto atual que ele esteja vivendo. Afinal, a análise de conjunturas políticas servem sempre para reorganizar nosso olhar sobre o que está acontecendo no momento presente. Dessa forma, mesmo que a peça não apresente nenhuma citação direta ao ex-presidente Jair Bolsonaro, qualquer citação a uma figura de poder autoritária irá nos fazer lembrar dele. A questão é que, as atuais figuras políticas fascistas, em especial as que estão associadas à família Bolsonaro, apesar de parecerem ainda carregar aspectos grotescos, há, concomitantemente, toda uma construção estética limpa e padronizada em suas figuras que sustentam as narrativas de homens religiosos e de família. A desqualificação de Jair Bolsonaro para assumir a presidência do país é visível e risível quando olhamos para sua trajetória, mas o que o elege não é a imagem bufonesca dele e a tentativa de ridicularizar mais ainda os poderes políticos brasileiros com algum tipo de “voto de protesto” (discurso comum de alguns cidadãos brasileiros, quando elegeram o palhaço Tiririca como deputado federal, por exemplo). O que o elege é a aceitação da imagem de um homem “de bem”, da família, conservador e religioso; mesmo que, contraditoriamente, esse homem defenda o porte de armas, dê declarações preconceituosas e apoie a ditadura militar. O que é veiculado como ridículo nessa figura, não tem o efeito da abjeção em muitos de seus defensores, mas sim o efeito da empatia (“é gente como a gente”). O contorno que se elabora é outro, basta olhar a assepsia da imagem do casal Eduardo e Heloísa Bolsonaro, filho e nora do ex-presidente, e que também são figuras políticas fortemente ativas no cenário de ascensão da extrema direita do país. Ou ainda, se pensarmos mais à frente e formos analisar a expectativa que tem se construído sobre a imagem de uma figura de direita como Simone Tebet. O terror que o Brasil vive com o Bolsonarismo, em termos das aparências veiculadas, é uma mistura do terror ubuesco com o padrão estético das novelas de Manoel Carlos. Dessa forma, será que Ubu Rei ainda representa as figuras autoritárias que se constroem no século XXI? Ainda mais se considerarmos que o ato vanguardista de Jarry está mais na estética grotesca desenhada do que somente na narrativa da figura (que, por sinal, já é repetição de uma antiga dramaturgia).
O que delineia essa estética são as imagens, como quando veiculam em meios de comunicação fotos de Donald Trump, ex-presidente dos EUA, com o rosto fortemente alaranjado ou ainda a foto de Bolsonaro tentando colocar uma máscara descartável com menos habilidade que uma criança. Mas, essa produção de imagens também é ferramenta da direita, como estratégia de ridicularização quando se veiculam fotos do presidente Lula bebendo ou preso, ou ainda da ex-presidente Dilma Rousseff com expressões faciais desfavoráveis. Na realidade, se observarmos os estudos do pesquisador José Cezar Castro Rocha (UFRJ), autor do livro “Guerra Cultura e Retórica do Ódio” (2021), perceberemos que a desqualificação constante é estratégia da direita para criar um falso posicionamento político em seus articuladores e seguidores que torna a política em si inoperante.
Meu ponto é que, essa forma ubuesca de representar as figuras autoritárias não revelam algo a mais sobre elas, como foi em 1896, quando Jarry fez uma atuação dessas subir aos palcos franceses com ineditismo. Em nosso caso, no Brasil de 2023, a forma ubuesca reitera a nossa visão (de esquerda) sobre a coisa. E daí, a possibilidade de um teatro político retorna a uma proposta narcisista como escrevi na crítica ao espetáculo “Dr. Anti” da Cia. Extemporânea (SP). Mas, após ver em cena aquilo que eu já pensava, ainda ficamos com a questão: como se desarticula esse sistema autoritário para além da deposição da figura emblemática dele? Como podemos ver nossos Pais Ubus como grotescos, enquanto uma parte considerável da população o percebe como Messias? Que distorção estética é essa que se opera, sendo possível visões antagônicas sobre a mesma figura?
Outra questão que me parece perceptível na dramaturgia é a ausência da representação do povo e suas possibilidades de revolta, com o mesmo nível de complexidade com que se representa os tiranos e seus apoiadores políticos. Essa ausência é notável tanto em Macbeth, quanto no Ubu Rei de Alfred Jarry, quanto nesta versão em questão. Lembremos que foi a revolta popular que cortou as cabeças da rainha francesa Maria Antonieta e do rei Luís XVI; assim como, revoltas populares marcaram os movimentos de esquerda do Brasil desde o início da República e foi a organização popular que conseguiu superar a maior máquina de estelionato já produzida na história do nosso país durante as eleições de 2022 para tentar reeleger Jair Bolsonaro. É também projeto da direita política tentar enfraquecer os movimentos de rua e tomá-los para si (observemos a invasão do Congresso Nacional por bolsonaristas poucas semanas atrás); combinada com um discurso de alguns agentes da esquerda de que tudo deve se resolver entre as instituições e as forças de segurança do país. Mesmo o plebiscito apresentado na peça “Ubu”, ainda sendo uma prática orquestrada pelas instituições e legitimada como único exercício democrático possível ao povo, mesmo essa é derrotada na peça. O povo parece não ter absolutamente nenhuma chance contra as autoridades.
Fico com algumas perguntas ecoando…
Quem nos representa em cena?
E como nos representa?
Como somos capazes de nos ver dentro do jogo teatral, com viés político?
Em “Ubu”, o novo rei veste uma coroa de bananas, em alusão à ideia da “República das Bananas”. Esse termo pejorativo foi criado por um humorista norte-americano para se referir a países subdesenvolvidos da América Latina. Questiono essa escolha porque parece que a peça reflete a nós mesmos como uma comunidade incapaz de outras coisas além da exploração; mesmo que a cena final tente nos alertar em sermos diferentes da imagem construída, o que temos diante de nós é a afirmação simbólica durante todo o espetáculo, de um povo passivo e reduzido a alguma monocultura ou estereótipo tropical.
As semelhanças entre as dramaturgias já escritas sobre figuras autoritárias, como Macbeth e Ubu Rei, com os políticos de direita e extrema direita que retornaram ao poder em alguns países do continente americano e da Europa, são, de fato, impressionantes. A idiotia, o desespero, o sadismo delineiam figuras reais e nos fazem vislumbrar as narrativas já contadas em textos muito antigos, como uma repetição insistente da história.
Mas, o que pode o teatro diante da atual situação política do país? O que pode o teatro quando as redes sociais já produzem, diariamente, centenas de frames teatrais que releem a realidade, inclusive por uma ótica ubuesca? O teatro conseguiria, para além da exposição de um retrato da realidade, evidenciar a articulação complexa de um sistema/figura, sua transformação e composição? Não apenas representar um golpe em cena, como um fato; mas expor, analiticamente, sua estruturação.
Foto do Banner: Damião Paz.