Por Heloísa Sousa
31/01/2023
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Em janeiro de 2023, o teatro do SESC Consolação, em São Paulo, recebe uma temporada de apresentações do espetáculo “Ubu Rei” com o grupo Os Geraldos (SP) e direção de Gabriel Villela (MG). O espetáculo foi criado durante o ano de 2022, e traz em cena a versão traduzida por Bárbara e Gregório Duvivier em uma edição premiada e publicada pela Ubu Editora. Os próprios tradutores dizem em nota que as semelhanças entre Ubu Rei e os últimos acontecimentos políticos no Brasil são evidentes, mesmo que o original tenha sido escrito pelo francês Alfred Jarry e montado no final do século XIX. Ubu Rei, que em si já é uma versão de “Macbeth” de William Shakespeare, narra a ascensão de um déspota ridículo que sobe ao trono através de um golpe onde assassina o rei com ajuda de alguns aliados. Pai Ubu não faz isso dissociado de sua família. Assim como em Macbeth, a personagem central feminina - Mãe Ubu (e Lady Macbeth, na versão shakespeariana) unida matrimonialmente ao protagonista, é tão ardilosa e responsável pelo golpe quanto ele. Em paralelo, é comum vermos a ascensão da extrema direita ao poder no Brasil e seu slogan “Deus, pátria e família”, de origem fascista, como uma repetição verídica de dramaturgias escritas outroras e que já revelavam esquemas golpistas e autoritários desde as monarquias, em contextos europeus.
Esse texto que escrevo pode servir como continuação de outra crítica já publicada neste site sobre o espetáculo “Ubu: o que é bom tem que continuar” do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, Grupo Facetas, Mutretas e Outras Histórias e Grupo Asavessa (RN). Na crítica anterior, busco problematizar a escolha pela montagem da dramaturgia “Ubu Rei” de Alfred Jarry, para pensarmos se ela, de fato, ainda representa as figuras autoritárias do nosso século.
Na versão dirigida por Gabriel Villela, o texto e a narrativa são mantidos, em sua maior parte, como na tradução original dos Duvivier. O que observamos é uma estética já característica do encenador mineiro, onde cenário e figurinos ganham muita expressividade dramática, tanto pela feitura e técnica, quanto pela mistura de diversas referências culturais que criam uma imagem com muitas simbologias e texturas. Buscando seguir a lógica grotesca que foi desenhada por Jarry em sua dramaturgia, Villela opta pelo exagero das aparências corporais, pelas ridicularizações, pelas construção cômica constante e por marcar alguns pontos da peça com citações diretas ao cenário político atual brasileiro e suas figuras emblemáticas.
Entretanto, apesar da peça parecer expor uma visão crítica sobre o autoritarismo, sugerindo a possibilidade de debochar dessa realidade e observar o teatro encantar uma ficção que reverbera diretamente no nosso contexto; o que a peça finda por criar é uma percepção reduzida disso, cujo riso desarma a indignação e sugere ao público distanciamento e passividade diante do que é apresentado.
Algumas escolhas para a cena nesta versão de “Ubu Rei” podem ser questionadas se observarmos o compromisso que a peça assume em nos fazer rever a realidade, como é destrinchado em seu programa.
Por que a sátira apresentada tem tantos contornos femininos? As saias nos atores e atrizes, as vozes agudas, os trejeitos, os seios expostos como imagens orgiásticas marcam a obra; e com isso, não quero dizer que existe, de fato, ações e aparências restritas a algo “naturalmente feminino”, mas sim, que a performance de gênero se apoia em determinados códigos que quando lidos organizam a percepção do espectador na lógica binária. Quando um tirano como Jair Bolsonaro apresenta sua lista de ministros, o mais comum e o que mais fere é a presença maciça de homens brancos cis engravatados e austeros, performando suas masculinidades, suas seriedades, suas violências intransigentes e citando descaradamente a delirante potência de seus falos, nunca expostos organicamente, mas sempre simbolizados pelas armas empunhadas. Afeminar essas figuras ainda é uma maneira de desarticulá-las? Seria possível ridicularizá-las dentro da própria armação hipermasculinizada, que nunca foi própria de uma “natureza”, mas apenas uma performance da virilidade como estratégia de poder?
Para além dessa forma em tratar a comicidade, onde as lógicas sexuais e de gênero ainda parecem servir como maneira de ridicularizar as figuras, também existe uma operação memética na obra que parece misturar algumas imagens de modo questionável. O personagem Bostadura, um dos aliados do Pai Ubu no golpe contra o Rei da Polônia e muito bem interpretado pelo ator Railan Andrade - que ganha um destaque considerável na peça, aparece com voz e expressões semelhantes à do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em determinado momento da peça, ao tentar aliança com uma Czarina e depois retornar à parceria com Pai Ubu, Bostadura perde um dedo e passa a imitar a voz do atual presidente Luís Inácio Lula da Silva. Articular duas figuras políticas na mesma personagem cria a leitura de equivalência entre elas, as vozes mudam, mas a personalidade permanece e a aliança com a tirania também. Sugerir um imaginário que aproxima as figuras políticas de Jair Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva, quase reiterando a fala daqueles que defendem uma “terceira via” por compreenderem as duas figuras citadas como extremos equivalentes, é uma leitura completamente equivocada do nosso cenário político. Um governo genocida e fascista de extrema direita não pode ser tomado como equivalente a um governo democrático de esquerda; se esta analogia está sendo feita, é porque desconsidera-se a discussão das pautas políticas de cada governo e observa-se apenas a veiculação midiática de seus representantes.
Essa colagem de imagens reconhecíveis dentro de pequenos espaços abertos na dramaturgia por uma fala, um gesto ou uma situação, parece reproduzir a lógica de feitura dos memes. Em uma sociedade marcada pelo uso exacerbado de redes sociais, o compartilhamento de memes torna-se não apenas lugar de expressão, mas marca formas de produção e leitura das imagens contemporâneas. O que faz os memes funcionarem bem é a rapidez com que conseguimos lê-lo, quando mistura imagens reconhecidas na criação de uma terceira que pareceria crítica às anteriores. O riso alcançado é quase imediato e a sensação de identificação gera certo conforto na interação com o leitor/espectador. A questão é que essa lógica, que parece se repetir como estratégia de cena no “Ubu Rei” de Villela, mistura imagens que não são equivalentes e criam um terceiro cenário que é enunciado como uma conclusão coerente, mas é apenas uma mistura para o riso. Como quando a Czarina se apresenta como Zambelli (em alusão à deputada federal Carla Zambelli) ao empunhar uma arma para o Pai Ubu, como se estivesse disputando com ele. Zambelli foi uma das apoiadoras de Jair Bolsonaro e, acusada de porte ilegal de arma, além do seu uso contra civis em ruas de São Paulo. Qual o sentido dessa figura se colocar contra o protagonista tirano da peça, se ela sim é equivalente a ele? Em termos discursivos parece não haver muito paralelo, somente a imagem da mulher com a arma em mãos que cria essa analogia.
O que eu reitero nas análises sobre as montagens atuais de “Ubu Rei” é uma atenção sobre a escolha do texto e uma busca por compreender a ação estética que Jarry provocou em seu tempo. Se atentarmos apenas para a explanação da narrativa que ele conta, corre-se o risco de criar uma reconstrução histórica e saudosista da peça, reproduzindo a forma de encenar proposta pelo artista, ao invés de propor a partir de seu gesto. Se Jarry foi inovador ao apresentar uma estética grotesca no meio de diversas encenações francesas naturalista e próximo da ascensão do simbolismo na Europa, o que seria o grotesco da nossa atualidade? Ao reencenar um texto antigo ou o movimento de encenação de algum artista anterior que marcou seu tempo, ao invés de reproduzir sua estratégia, podemos observá-la de perto e identificar como realizar o mesmo gesto no nosso tempo.
Localiza-se a encenação dentro da ideia de patafísica, termo cunhado pelo autor de “Ubu Rei” que, segundo o programa distribuído na entrada do teatro, “Trata-se das ciências das soluções imaginárias, criada por Jarry para presentear a humanidade com uma chave de pensamento que lhe permita rir de governantes, procuradores, juízes, financistas, nobres. Um riso que nos faça acordar para o pensamento, com complexidades e dialéticas capazes de superar polarizações e maniqueísmos baratos”. A política de direita, em muito se assemelha às estratégias capitalistas de captura de ações que parecem contrárias a ela para poder fortalecê-las. Ridicularizar todas as figuras políticas e outras autoridades já tornou-se artifício da extrema direita que se aproveita da insatisfação coletiva do povo brasileiro, em termos sociais e econômicos, para descredibilizar qualquer agenda política em favor de seus representantes. O que representa a invasão na Praça dos Três Poderes em Brasília, em janeiro de 2023, se não uma ato grotesco de diluição simbólica das instituições ali organizadas, e portanto, do próprio sistema democrático? Representar figuras autoritárias como risíveis e zombáveis, sendo essas mesmas responsáveis por projetos genocidas, não possui mais a mesma força simbólica que foi possível na França de Jarry em 1896. E ao contrário do que se parece, somente reforça uma interpretação maniqueísta da realidade, determinando vilanias dentro do sistema político e encerrando as discussões a partir dessa constatação.