Por Quemuel Costa
27/02/2023
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Desde 2016, uma vez por ano os Clowns de Shakespeare realizam o Laboratório da Cena, curso de duas semanas sediado em Natal/RN que reúne gente de todo o Brasil (e de fora dele também) para viver um processo que aproxima os participantes do modo de trabalho do grupo. O processo criativo é condensado em duas semanas e o resultado final é sempre aberto para o público. Em sua oitava edição, com a proposta de explorar as possibilidades de criação de obras para as infâncias e juventudes, o experimento final do Laboratório da Cena 2023 intitulado “Rabiola” teve sua única apresentação realizada a céu aberto em 04 de fevereiro na Cidade da Criança.
Assim que cheguei à Cidade da Criança fui recebido por dois participantes do Laboratório em um triciclo que perguntavam “é pro teatro?” e em caso de resposta afirmativa, nos indicavam caminhar até “avistar a rabiola”, onde se iniciaria o experimento. Já na primeira cena foi possível observar que o experimento, por ser criado e ensaiado em um período extremamente curto, trazia em sua fruição alguns ruídos e fragilidades: pela distância que eu estava e por acontecer a céu aberto com todo o barulho que um parque em pleno sábado pode ter, pouco ouvi da primeira cena, que era realizada somente por um ator e aparentemente se tratava de uma introdução com indicações a respeito da obra. Me aproximei da “boca de cena” para ouvir melhor.
O experimento seguiu de maneira itinerante. Neste início passamos por três estações: na primeira, nos deparamos com trabalhadores que operavam de maneira mecânica e repetitiva, na segunda com adultos viciados em celular e internet e na última com outros adultos extremamente cansados. É interessante observar que apesar da escolha de fazer um teatro pensado primeiramente para crianças, as temáticas dessas três cenas que abrem o experimento são sobre os adultos e seus modos de viver. Aqui também já é estabelecido um pacto entre público e atores que se seguirá por toda a obra: a participação desse primeiro é primordial para que ela aconteça em seu máximo potencial. Para sorte e melhor fruição de todos, o pacto foi bem sucedido e as crianças ficaram na “primeira fila” da plateia e participaram ativamente de todas as interações propostas. Na última estação, a dos adultos cansados (um beijo, Byung-Chul Han), fomos recebidos por duas figuras muito peculiares e extremamente animadas que nos mostraram os adultos cansados como um guia turístico mostra bichos em um zoológico.
Aqui o jogo era o seguinte: o público recebia dois comandos para se relacionar com esses adultos e ver suas reações, podíamos gritar “sextou!” e ver esses adultos que estavam extremamente exaustos e deitados no chão se levantarem, dançarem e se moverem de maneira extasiada ou pedirmos para eles brincarem conosco, o que os fazia voltar para o primeiro estado de cansaço e inércia. Aqui, diferente das duas estações anteriores, nas quais havia uma grade separando atores e público, não havia nada que impedisse a aproximação total entre ambos, o que gerou uma das imagens mais interessantes do experimento e que talvez condense uma de suas forças: as crianças literalmente entraram no espaço cênico (um gramado), se misturaram aos atores e passaram a compor a imagem que se formava, estabelecendo uma cena que radicaliza o convívio entre elenco e público.
A cena segue nessa proposta convivial, envolvendo cada vez mais o público. Uma das adultas cansadas é o ponto de ligação para a transição desse momento das estações para outro, no qual a narração ganha força e ficamos sabendo um pouco mais sobre essa personagem: é uma idosa que conta histórias, mas que está tão cansada que sempre dorme antes de terminá-las, o que muito aflige suas netas. As duas netas tiram a avó da estação dos adultos exaustos e a levam em um triciclo pelo Parque da Cidade. Em um determinado momento, uma das netas começa a contar que a avó, por ter demência e estar muito debilitada, passa a maior parte do tempo dormindo, mesmo com as inúmeras tentativas das netas de acordar e interagir com ela. E é aqui que mais uma vez somos convocados para a execução da cena, interferindo diretamente em sua forma: a neta nos conta que a única maneira de acordar a avó é colocando músicas de tango para tocar, então nos pede que batamos com a mão direita no peito continuamente para criar o ritmo da música enquanto ela canta a letra. A cena é um dos momentos mais bonitos e sublimes do experimento, e ao mesmo tempo, um dos mais tristes: mesmo com as batidas no peito do público e com o canto da neta, a avó não reage mais. O triciclo desliza pela rua sem ninguém pedala-lo enquanto a avó segue dentro dele imóvel, se distanciando de nós enquanto nem mesmo todo o envolvimento do público pode resgatá-la da morte.
Contrastando fortemente com essa, inicia-se outra cena da qual pouco pude entender e absorver de sua narrativa. Há dois atores representando duas crianças, um menino e uma menina. O menino procura e grita por sua amiga chamada Maria. A cena ocorre no gramado do parque e envolve vários cataventos enfiados no chão. É interessante que a cena da avó e essa tenham ocorrido em sequência porque acabam condensando e exemplificando o contraste no acabamento e na fruição do experimento. Enquanto em uma cena eu pude ouvir e entender tudo muito bem, na outra, pela sua formatação, pouco pude ouvir do que os atores falavam, principalmente por ser em um gramado que era mais espaçoso e mais barulhento do que a rua para os pedestres onde aconteceu a cena anterior. O experimento oscila diversas vezes entre esses dois tipos de cena e fruição, algumas com maior “acabamento” e outras com mais fragilidades e ruídos, o que se deve ao curto tempo em que são criadas e ensaiadas.
Apesar disso, a experiência geral do experimento não é prejudicada pelos momentos em que se relacionar com as cenas com menos acabamento se torna um pouco difícil, principalmente porque apesar dessas fragilidades o experimento encontra muita força na radicalização para a qual se lança no que diz respeito à interação com o público e experimentação das possibilidades de cena. Radicalizações essas que, pelo menos no nível que os experimentos dos Laboratórios das Cenas alcançam, não são tão frequentes na cena teatral natalense, nem mesmo nas obras mais recentes dos próprios Clowns de Shakespeare. Como exemplo da experimentação nas possibilidades de cena é possível citar a própria estrutura do experimento, que em sua sinopse afirma “como na composição de uma rabiola, que é formada por fragmentos de tecidos que permitem que a pipa ganhe voo, nosso resultado é composto de células que refletem sobre o fazer teatral para crianças” e traz diversas cenas que não necessariamente conversam entre si, muitas vezes se destoando e tendo um caráter independente, como a cena dos Vermes Infames, na qual uma banda punk rock formada por minhocas faz um pequeno show cantando músicas com fortes críticas aos humanos. Então, a ausência de busca por uma unidade dramatúrgica ou estética (exceção somente para as atuações, que acontecem sempre em um registro caricato e grotesco) possibilita ao experimento trazer cenas muito diversas, peculiares e até mesmo inusitadas, como uma espécie de cardápio teatral com diferentes formatos de cena, o que também aumenta as possibilidades de relação dele com o público, uma vez que a cada momento somos convidados a conviver com propostas de cenas diferentes entre si.
Fotos de Mylena Sousa.