Por Heloísa Sousa
27/01/2017
O espetáculo solo “Violetas” com Mayra Montenegro e direção de Raquel Scott Hirson (Lume Teatro - SP) retornou em 2017 com curta temporada no palco da Casa da Ribeira. É a segunda vez que eu vejo a artista Mayra Montenegro sozinha em cena, a outra vez foi nas apresentações do espetáculo “De janelas e luas” (2011) que fez parte de sua pesquisa de mestrado na UFRN sobre o uso da voz em cena. É este interesse de pesquisa que parece conduzir boa parte das experiências artísticas da atriz que busca formas de integrar o fazer teatral com seus conhecimentos na área do canto. Desta vez, Mayra se dedica a uma pesquisa sobre a mímeses corpórea e vocal, através da direção de Raquel Scott que já possui uma vasta pesquisa prática neste campo no Lume Teatro (SP).
Para esta obra, Mayra escolhe recuperar memórias e modos de falar/agir de sua avó Wilma Montenegro, além de desenvolver outras figuras em cena como uma locutora de rádio, a moça do interior que se muda para São Paulo, sua tia-avó e até ela mesma durante a infância. Essas figuras transitam entre tempos distintos e são identificadas em cena apenas pelas suas vozes e posturas, já que o figurino e a cenografia se mantêm linearmente durante a maior parte do espetáculo. Mas, todas as personagens são atravessadas por um contexto peculiar; através do “guia da boa esposa” proferido pela locutora somos apresentados a uma estrutura de pensamento veiculada nas mídias da década de 1950 que concentrava as “funções” da mulher em ações caseiras e matrimoniais. E isto nos faz perceber uma intenção de abordagem feminista na obra que apesar de nos inserir em um tempo passado, nos remete também a discussões de gênero pertinentes à contemporaneidade.
As artistas envolvidas nesse trabalho escolhem iniciar a abordagem sobre o feminino através de sua representação publicitária. Da propaganda da boa esposa aos manuais machistas de revistas direcionadas ao público feminino, das mulheres valorizadas em comerciais de eletrodomésticos ou produtos de limpeza às hipersensualizadas nos comerciais de cerveja; do golpe [midiático] sofrido pela primeira presidenta eleita no Brasil à capa de revista de nossa atual [e ilegítima] “primeira-dama” que recupera uma frase medíocre que se torna hashtag de protesto [midiático] entre inúmeras mulheres pelo país. O espetáculo “Violetas” aborda o primeiro desses exemplos que acabei de enumerar, mas inevitavelmente recupera todos os outros em nossa memória.
A dramaturgia deste espetáculo transita entre uma apresentação das contradições entre discursos e práticas que as próprias personagens começam a elucidar sobre o “papel da mulher na sociedade”, e uma homenagem à avó da intérprete em cena, assim como as outras mulheres que de alguma forma atravessam a criação e a pesquisa deste trabalho. A história de Dona Wilma com seu desejo pela arte e seu impulso contestador vai se transformando ao longo do espetáculo e se concentrando na relação entre uma avó e uma neta. Relação que se desenvolve com certa comicidade e afeto, nos levando a conhecer aspectos da intimidade e vivências compartilhadas entre as duas figuras. O trabalho nos permite conhecer um pouco sobre Dona Wilma com sua ludicidade, delicadeza e provocações sobre a própria condição feminina.
Violetas são pequenas flores, de uma cor híbrida (mistura entre o vermelho e o azul), que se adaptam com facilidade aos ambientes, precisam de água e de sol com equilíbrio (nem de mais, nem de menos). Uma planta simples, fácil de cuidar e com uma beleza atraente, além de suas propriedades medicinais. É impossível não notar o trabalho de João Marcelino no figurino usado pela atriz, que remete diretamente às violetas. O corte do vestido utilizado nos lembra de uma modelagem comum na década de 1950 que reforçava a feminilidade da mulher através de um comprimento “comportado”, uma cintura marcada e estampas coloridas. Neste caso, o figurinista escolhe um tecido “aquarelado” em tons de roxo, lilás, azul e branco que cria um ponto de luz na composição da visualidade de “Violetas”, trazendo suavidade e movimentação ao olhar do espectador, nos auxiliando a observar a obra teatral como sendo um jogo onde todos os elementos convergem para o destaque da presença cênica da atriz. Além disso, os detalhes da aparência corporal usada no espetáculo como os pequenos brincos de pérolas, os sapatos de salto acinzentados e de bico redondo, o cabelo amarrado em coque constroem uma imagem que nos revela outro tempo na história da moda. E a roupa íntima exposta no final do espetáculo como sinal de libertação e desvelamento da intimidade em si; encerra o grande anacronismo desse espetáculo. Parece estarmos diante de décadas passadas, um tempo que não nos pertence mais, com uma imagem socialmente padronizada de “mulher” que já não nos representa ou não se apresenta. Será?
Importante notar que esta é a minha quarta crítica publicada no portal Farofa Crítica (as outras foram sobre os espetáculos “Dança que ninguém quer ver”, da Cia. Gira Dança; “O som que se faz debaixo d’água”, do Grupo Cores e “A arte precisa ser”, de Carol Piñeiro e Anádria Rassyne) e a terceira que fala sobre uma obra com abordagem feminista, lugar de discussão que me interessa bastante. A cena potiguar tem sido cada vez mais composta por mulheres que expandem a si mesma nos palcos, nas ruas ou onde quer que seja. A afirmação de um pensamento feminista é estratégia política não apenas nos diálogos do cotidiano, mas também nas nossas ações de criação e proposição. Apenas consigo finalizar esse texto com a frase:
Mulheres, continuem!
FICHA TÉCNICA
Direção: Raquel Scott Hirson. Assistente de Direção: Eleonora Montenegro. Atuação: Mayra Montenegro. Figurino: João Marcelino. Costureira: Fátima Rocha. Iluminação: Rogério Ferraz. Cenário: Mayra Montenegro e Raquel Scott Hirson. Construção do Cenário: A Fábrica Atelier. Operação de Som: Paul Moraes. Produção: Bobox Produções.