Escombros de um Teatro Punk

Por Heloísa Sousa
02/04/2023

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Em março de 2023, o grupo Teatro da Matilha (SP), dirigido pelo ator, diretor e performador Tadzio Veiga, realizou duas apresentações da obra “Foda-se eu” na atual sede do Grupo XIX de Teatro, localizada na Vila Maria Zélia. O espetáculo teve sua estreia em fevereiro deste ano, no mesmo espaço e é a terceira obra no repertório do grupo.

Escrevo esse texto misturando uma narração dessa ida ao teatro com uma percepção crítica sobre a obra em si com uma excitação pessoal vivida no dia 26 de março de 2023 com as leituras em torno do grupo, das obras e dessa estética. O texto vai se escrever por aí porque tudo foi mais da ordem do acontecimento do que de uma pura contemplação, portanto, talvez eu seja menos rígida e menos excessivamente significativa [ou não também, talvez eu fracasse no que estou presumindo].

Saio de casa com pouco mais de uma hora de antecedência. Pego o metrô na estação Marechal Deodoro, desço na estação Belém. Pego um uber e chego na Vila Maria Zélia. Eu sou natalense, estou em trânsito por São Paulo há pouco mais de um ano, tudo é meio novo para mim com certa frequência. E eu nunca tinha estado nesse lugar. Entro. Tem uma entrada semelhante a de um condomínio fechado. Por dentro, prédios e casas com arquiteturas muito antigas, alguns fechados, tombados, desativados, tudo meio amarronzado, acinzentado, velho, as ruas normais, sem muitas marcações, um silêncio, uma ausência de trânsito, ares de cidade interiorana. Encontro com Ultra, pergunto para ele que lugar é esse? Ele chama Janaína e ela me explica que é uma vila antiga tombada e que o Grupo XIX ocupou um dos prédios há muitos anos. Parece muito com uma cidade cenográfica projetada para filmar algum longa-metragem de suspense. Eu tenho expectativas com o trabalho, vendo as divulgações me parece alguma coisa muito próxima do tipo de coisa que eu gosto de ver. Sim, gosto. Tipo, gosto mesmo. Você leu como verbo ou como substantivo? Eu nem sei o quanto que um crítico de teatro pode falar sobre gostar, mas foda-se também. 

 

Foto de Pedro Martins

O Teatro da Matilha é um grupo paulista de jovens artistas que vem se debruçando por alguns conceitos específicos e referentes ao que nomeamos por contemporaneidade. As ideias de agrupamento, individualidade, dissolução, festividade, narcisismo, inversão, efemeridade, violência, caos, destruição, são alguns dos conceitos que parecem basear as pesquisas, os discursos e a materialidade das obras. Mas, parece haver também um esforço em apropriar-se desses conceitos como operadores da cena; e nesse ponto, na tentativa de transformar um conceito em um operador, resida a forte possibilidade de alargamento e extensão das práticas desse grupo, indo para além de uma composição fotográfica dos conceitos. Mas, reitero que, é a composição fotográfica dos conceitos que pode revelar a forma como a aparência dos mesmos se arma no mundo, para em seguida, num movimento ainda mais radical e vertical, o artista poder fazer essa máquina se mover e na movência permitir que ela possa ganhar outro contorno (outra imagem, portanto) que poderá, inclusive, parecer muito divergente da palavra-ponto-de-partida. Não sei se consigo me fazer compreender no que acabei de dizer, mas seria como a passagem do substantivo para o verbo, da coisa para a operação, da característica para a performance. Por exemplo, qual poderia ser a diferença entre teatralizar a dissolução e teatralizar o dissolver? Ou a diferença entre representar a dissolução e dissolver a cena? 

dissolver em cena

x

dissolver a cena

Para além desses conceitos que elenquei, existe também algo sobre a coletividade e algo de punk na obra “Foda-se eu” que parece recorrente no grupo. Considero essas reincidências fundamentais para pensar certas obras e artistas, principalmente os que se aproximam da ideia de um teatro de pesquisa, onde a investigação se estende para além da finalização e apresentação de um único espetáculo; mas também não configura um enrijecimento poético, um tipo de silhueta que marca o artista ou um grupo. Nomear-se matilha não parece ser aleatório já que o grupo se debruça sobre como os conceitos atravessam a coletividade ou os agrupamentos. 

 

Foto de Paula Squaiella.

“Foda-se eu” é uma obra cênica que versa sobre o eu. Mas, busca versar [pesquise o verbete no Google] a partir da negação. Mas, essa negação não promove o desaparecimento ou a diluição, é uma negação como ato de enfrentamento, confronto, ato violento contra. Mas, um ato violento que contempla também o fracasso. Na diluição do eu, é necessário torná-lo alvo dos ataques, o que lhe confere certo protagonismo. Na recusa desse protagonismo (e da autorepresentação), uma escolha é promover um contraste entre o eu e o todo (ao invés do eu e o outro), o que alcança uma diluição do eu no coletivo, um apagamento da percepção de suas fronteiras (que continuam ali), quase como um movimento por ignorá-lo. Se não for possível foder eu, então que se foda.

 

Foto de Paula Squaiella.

Algumas imagens e movimentos são escolhidos para rodear esse desafio conceitual (existencial?). A primeira é a escolha pela forma da dança-teatro. Mesmo sem antes saber que o próprio grupo assumia essa escolha, enquanto eu estava sentada na plateia, meu corpo me diz “é dança”. Obviamente que as categorizações parecem sempre vacilar e insistir em algum tipo de obsessão pela identificação, mas, ao mesmo tempo, dizer que “tal coisa é tal coisa” é intrínseco à experiência de recepção e tem suas contribuições na estruturação da nossa memória e das nossas sensações. Praticamente não há falas na peça, retira-se do eu um dos seus principais marcadores de identidade - a enunciação verbal; os corpos aqui não opinam, nem palestram, pouco se manifestam, e isso evidencia os automatismo porque os corpos apenas seguem. Seguem em repetições, em agrupamentos, em pausas coletivas. Mas, há algo aqui próprio de um grupo de teatro que dança que é a organização dramatúrgica pela movimentação e transformação e de ações e imagens. A situação dos corpos e suas relações tornam-se muito mais evidentes do que quando se dançam movimentos que parecem seguir apenas a referencialidade ao próprio movimento. O Teatro da Matilha dança alguns conceitos. E sim, apesar do contorno caótico e agressivo, há muito de conceitual nessa obra. Quando um grupo de teatro dança, ele passa a habitar os dois lugares e ao mesmo tempo nenhum, surge, então, outra coisa. 

 

Também acho que a peça é punk, meio pós-moderna.

 

Anotei assim nos meus rascunhos para escrever essa crítica e depois não encontrei nenhum modo melhor de reescrevê-la, então, deixarei como está. Mas, vou explicar. As qualidades exibicionistas, expositivas, imorais e agressivas da peça me remete à atitude punk, se busco algum diálogo com movimentos estéticos semelhantes em períodos anteriores. O movimento punk surge na música, entre as décadas de 1970 e 1980, com maior expressividade na Inglaterra e representado por bandas como Sex Pistols, The Clash e Ramones. Como uma reação à realidade precária vivida pelos jovens da classe operária em concomitância com o crescimento neoliberal, tudo isso em um século que abarcou duas guerras mundiais e outros genocídios. O movimento punk devolve ao mundo a raiva acumulada - denuncia e expõe, mas não se ocupa de nenhuma estratégia de organização ou revolução propriamente dita. Embora estejamos vivendo uma saturação publicitária e imagética onde parece que tudo já é comumente exposto, pornográfico e violentado; parece haver alguma coisa de retorno desse punk por uma geração jovem que ainda vive as mesmas precariedades com outros níveis de elaboração, cobrança e virtualidades. E sobre o meio pós-moderno, penso que essa retomada punk assume a realidade de um grupo de pessoas nascidas na década de 1990 [indico a leitura da crítica de amilton de azevedo sobre o espetáculo Dissolução Festiva: Geração Z, onde ele delineia essa jovialidade do grupo que está para além da idade dos corpos e que parece saltar aos olhos também na recepção de Foda-se eu], pós queda do Muro de Berlim e que, mesmo não tendo vivido a queda em si, vive intensamente uma contemporaneidade que retoma suas estratégias de autodestruição com outras roupagens.

 

“A ideia punk é existir como denúncia das coisas podres do sistema. [...] Punk (podre) não é o movimento, é o sistema. Só que a incorporação dessa persona (do agressivo) produz uma reverberação sobre essa violência. Denuncia-se violência com mais violência”. (COHEN, 2002, p.144).

 

Há algumas escolhas na contramão do que vem se tornando comum na cena contemporânea. Não tem projeção, não tem microfone, não tem quase nenhum diálogo, nem ninguém falando de si mesmo. Se retomarmos a leitura de algumas páginas do livro “Performance como Linguagem” (2002) do pesquisador brasileiro Renato Cohen, veremos uma série de características identificadas pelo autor em obras que passam a estruturar o que viemos a nomear de performance e também as influências dessas nas artes da cena brasileira. Foi, inclusive, lembrando de um subcapítulo do livro do Cohen que associei o Teatro da Matilha com o punk para perceber a teatralidade contemporânea do grupo. 

O Teatro da Matilha parece oferecer umas pistas de coisas interessantes que podem se estruturar ainda mais na cena paulistana - ou se desestruturar ainda mais. “Foda-se eu” se desenha com certo erotismo apesar das agressividades, as batidas da trilha sonora e os pulsos frenéticos dos corpos promovem contaminações. Cohen já destacava como a performance do punk sugere uma ordenação por collage [de imagens, de conceitos] sem a pretensão de elaborar alguma síntese. Nesse sentido, a peça não esquematiza nada, não mostra origens e muito menos fabulações. É crua. Não necessariamente cruel. Isso porque a imagem crua ainda reverbera certa alienação quando não vislumbra saídas de si mesma e nem acredita em hipóteses para o futuro. Mas, ainda insisto de que tem algo aí, algo no impulso que possa ser o desejo de revolução ainda em estado germinal. Princípio de revolução. 

Vamos fingir que essa crítica termina no parágrafo acima. Ou que esse trecho de agora não existe. Só pra que eu posso dizer que gosto pra caralho disso, desse trabalho, do tesão que ele gera. E eu nem sei explicar bem de onde vem isso. De onde vem essa excitação underground que não é individual. Outros se excitaram ali também, dava pra ver nos rostos. Talvez porque a obra vai pegando esse antigo checklist do contemporâneo e vai insistindo nele, mas sem beirar o tédio que a cena contemporânea brasileira, por vezes, opera. Talvez a obra me intrigue justamente porque eu não consiga [ou não queira] aplicar as coisas que eu já sei de modo tão direto e explicativo e significativo, e sei lá, foda-se também. 

 

“O criador punk, consciente dessa corrupção, e não compactuante com o cinismo do sistema, vai utilizar o horror, o culto à tanatologia como forma de externação de ideologia. Metaforicamente, é um movimento semelhante ao do mar que devolve à terra todas as impurezas que nele foram jogadas (como já dissemos, o punk exibe tudo o que o sistema produziu de podre - Auschwitz, Bomba H, etc.)”. (COHEN, 2002, p. 153).

 


O punk é necessário.

 

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