Por Heloísa Sousa
12/05/2023
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Semanas atrás eu conversava com Amilton de Azevedo (Ruína Acesa) sobre experiências de um-pra-um em performances. Essa configuração tem me interessado enquanto uma forma pertinente para se investigar sobre os encontros, as intimidades e a partilha. Eu mesma tenho me debruçado sobre essa questão “como eu [artista] encontro o outro [público]?” em meu trabalho como performer e somo a isso meu interesse em outras artistas que vem fazendo uma investigação semelhante como Eleonora Fabião (RJ), Raquel André (Portugal) e até mesmo uma das obras do Grupo Magiluth (PE), que depois descobri ser uma das referências para a obra em questão nesse texto.
Amilton me pergunta, então, se eu tinha visto “Ophelia is a-Live” de Rúbia Vaz e comenta que talvez eu me interessasse. Por muita sorte, acaso ou sei lá o quê, poucos dias depois, a performer anunciou uma temporada curta com algumas apresentações dessa obra durante o mês de abril. Digo sorte porque a obra foi criada em contexto de pandemia e seguia as experimentações com a virtualidade para manter as medidas de isolamento social vigentes na época. Após a retomada das atividades presenciais e posterior fim decretado da pandemia que se iniciou em 2020, assistir obras realizadas naquele período tornou-se quase impossível, a não ser que seus registros tenham sido disponibilizados pelos artistas em seus sites oficiais. A produção cênica deste período ou foi disponibilizada em vídeo, ou readaptada para o formato presencial ou deixadas nos currículos dos grupos e artistas como obra inativa no repertório.
Esse, inclusive, é um espanto meu. Diante das inúmeras experimentações e descobertas técnicas de como lidar com as questões de presença e teatralidades no campo virtual, pensei que esses formatos atravessariam radicalmente a composição da cena brasileira, não apenas como ponto histórico, mas principalmente como feitura. No entanto, a realidade é que a cena retorna ao ponto onde havia parado quando sofremos a suspensão das atividades presenciais. As peripécias nas plataformas de conferências, na criação de realidades virtuais, na comunhão de corpos em espaços distintos, nos usos de diferentes mídias sociais transitaram velozmente de alternativas inovadoras para obsoletas. E parecem não terem reconfigurado em nada o nosso olhar ou o nosso modo de compor a cena. Raramente percebemos resquícios dessas experimentações nas obras que estrearam a partir do ano de 2022.
Marquei horário para assistir “Ophelia is a-Live”. Anotei na agenda, não assumi compromissos naquele sábado e tentei manter em mente a experiência para vislumbrar como seria minha rotina.
A peça tem duração de um dia inteiro. Rúbia me manda uma mensagem quando minha manhã se inicia e segue interagindo comigo por diferentes mídias ao longo do dia, como quem me apresenta diversas cenas que compõem a obra. Duas coisas se confundem, a atriz e a personagem, como figuras distintas que se atravessam, coincidem e se observam. As angústias das duas parecem estar ali compartilhadas comigo, e naquele dia, somente comigo. Embora não haja nada de muito especial nesse “somente comigo”. É preciso que haja algo de especial nesse “somente comigo” para que eu sinta mais profundamente a sensação do “somente comigo?”. Não sei.
Uma atriz que pretendia fazer uma obra e foi impedida. Uma mulher que se depara com o desafio de materializar uma ideia nomeada Ophelia. Uma personagem que tem suas próprias crises e dificuldades de se comunicar. O problema da comunicação é um problema que também tem seus recortes de gênero. Em alguns momentos senti certa raiva de como era difícil entender alguns trechos das cenas; duvidei da artista e achei que era displicência dela não atentar para essas falhas, lembrei somente depois que era porque era Ophelia. Ri sozinha. Ophelia parece confusa ou não compreende perfeitamente o que sente ou eu que não dou atenção suficiente pra ela. A experiência da real dificuldade de compreender Ophelia talvez seja a parte mais forte da obra. Ainda mais porque os obstáculos que aparecem entre Ophelia e eu são mais materiais do que discursivos.
E então, há uma ligação. Uma chamada telefônica. Eu nem lembro a última vez que conversei com alguém, por telefone, que não minha própria mãe. Atender um telefonema tornou-se algo tão incomum na nossa realidade que o corpo parece se desorganizar todo quando vê o celular vibrando. Atendi. Eu estava ajeitando algo no meu quarto, ainda com pijama no corpo. Achei que seria algo rápido. Passamos quase uma hora ao telefone e conversamos sobre muitas coisas. O fato de eu gostar muito de conversar transforma a experiência da obra para a própria Rúbia que vai se deparar com pessoas diferentes e que lidam com esse diálogo de modos igualmente distintos. Para mim, o importante era observar meu corpo. Quando me deixo capturar pelo diálogo, vou me desconectando dos afazeres. Fechei a porta do quarto, deitei novamente na cama e conversei com Rúbia até ela encerrar a ligação.
Depois desse vínculo, Ofélia me perde. Assim como perde Hamlet (se é que o teve em algum momento). E me perde porque é difícil competir com o cotidiano. Ao propor uma obra performativa e duracional, a artista estende-se na relação com o público durante uma dia inteiro; mas, ao invés de ocupá-lo ou de interferir radicalmente na sua sensação de dia, a artista faz apenas algumas intervenções ao longo desse tempo. A questão é que a rotina parece imperativa, em alguns momentos me senti tendo que ouvir um áudio enquanto estendia a roupa no varal; ou tendo que ver um vídeo enquanto lavava a louça ou acompanhava minha avó na cozinha. Obviamente que a experiência estética sempre exige algum tipo de engajamento corporal e concentração; mas, quando a rotina acontece ao seu redor, o manejo dessas duas experiências paralelas torna-se um desafio. Tal como nas intervenções urbanas, onde o artista precisa lidar com a rua acontecendo ao redor da obra. As obras que experiencio em casa, são dessa mesma ordem? Que desafios isso implica ao artista e a mim mesma como público?
Penso que, em alguma medida, essas experimentações precisavam continuar acontecendo. Justamente essas mediadas por recursos virtuais. Não apenas como possibilidade do artista se experimentar a partir de outras estruturas e demandas de produção, mas também por considerar relevante o tipo de relação que está se configurando quando a virtualidade passa a atravessar de modo tão fundamental as nossas vidas. Começo a me perguntar se Ophelia continuará a-Live e se outras figuras poderão se conectar no futuro. Como será criar, a partir da virtualidade, sem que o distanciamento físico e social seja uma imposição, mas sim uma escolha estética?