O eu segue fodido

Por Heloísa Sousa
05/06/2023

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Entre os dias 01 e 02 de junho, o Teatro da Matilha estreou seu segundo trabalho do ano de 2023 em São Paulo. “Rito qualquer para qualquer coisa” é uma peça-performance-dança-site-specific-ou-qualquer-outra-coisa criada para acontecer na área de convivência da grande fábrica restaurada por Lina Bo Bardi que é o SESC Pompeia. As paredes e estruturas do prédio possuem tonalidades e texturas marcantes somadas a uma arquitetura industrial que transforma esse espaço em um dos lugares mais icônicos da cidade de São Paulo. O Teatro da Matilha cria algo que dialoga diretamente com essas cores e com aura paulistana, mas sem sair de seu próprio campo de investigação.

Ao contrário.

“Rito qualquer para qualquer coisa” podia ainda nomear-se “Foda-se eu”, título do último espetáculo do grupo que sucede a obra “Dissolução festiva: geração Z”. O campo de investigação dos artistas do grupo parece ter algumas palavras-chaves que se repetem na nossa memória a cada experiência como espectadora. “Foda-se eu” é o título de apenas uma de suas obras, mas parece também um termo muito expressivo para nomear as ações do grupo e que vai além da peça estreada no início de 2023. Tanto que, agora, em “Rito qualquer…” temos a sensação de estar vendo uma continuidade dessa peça. O termo é certeiro porque centraliza o “eu” como uma coisa, uma matéria, uma silhueta a ser reelaborada e centraliza o “foder” como estratégia de operações e discursos, que localiza radicalmente um tempo e uma postura. 

Mas, tanto em “Rito qualquer…” quanto em “Foda-se…” o eu não é apresentado pela lógica do fracasso ou de uma crítica maniqueísta que o determina como algo necessariamente negativo; antes disso, as obras parecem por sobre o eu um olhar infantilizado, abstrato, comum que o expõe como algo que flerta entre um simbolismo e um niilismo radicais. Parece querer muito dizer algo, mas não diz coisa nenhuma, mas compreendemos muita coisa que, no fim, podem não dizer nada. Esse jogo poético próprio do Teatro da Matilha, elabora um olhar debochado sobre a realidade, sublinha o vazio e o nada, soa quase despretensioso, cultiva o fim de qualquer expectativa (nada vai nos acontecer na frente de vocês, veicula o grupo nas redes sociais) e, justamente por isso, consegue apontar para certa vastidão de signos, imagens, acontecimentos e sensações. 

Não consigo te dar nada, apenas tudo.

O caráter investigativo das obras artísticas do Teatro da Matilha é muito explícito, tanto que as descrições de seus trabalhos são acompanhadas de perguntas diretas com as quais os artistas precisam lidar. Para “Rito qualquer…”, os artistas se questionam: “algo verdadeiramente nos acontece?” e somam a essa questão, uma outra: “que rito é feito sem significado, sem objetivo e sem maturidade?”. A escolha precisa das palavras que compõem as questões de pesquisa do grupo, assim como os títulos de suas obras, revelam grandes pistas sobre a experiência dos que criam e dos que assistem.

O início do “Rito qualquer…” estava marcado para 19h30 na área de convivência do SESC Pompeia. Estávamos lá, eu e váries outres, em pé ou sentados, zanzando pelo espaço, encontrando pessoas, aguardando. Algo iria acontecer dentro de alguns minutos. Como não há um espaço previamente determinado que delimite palco e plateia e nem configure o espaço cênico, não temos outra alternativa além de aguardar para que algo possa emergir

19h30.

Daquele ponto em diante, absolutamente qualquer coisa pode acontecer. Qualquer pessoa pode ser a pessoa a se observar. Qualquer situação pode ser a cena. O olhar do espectador se reconfigura e passa a caçar a obra no meio dos espectadores. Observei várias pessoas com certa desconfiança se aquele era um espectador ou um performer, buscava qualquer indício de um estranhamento, de um desvio, de algo anormal. São Paulo tem uma coisa do frio e do concreto, e nessa época do ano está todo mundo coberto com vestes escuras. Putz, vai ser difícil perceber a cena, todo mundo nessa cidade é meio paisagem dessa cidade, pensei eu, uma nordestina vestida de preto e com sobretudo. 

E então, a encenação brota. De repente, o olhar identifica corpos andando pelo espaço com moletons pretos, contrastando com o fundo de tijolos amarronzados do SESC Pompeia, encapuzados, carregando mochilas nas costas atravessadas por conduítes amarelos. Do mesmo modo que a encenação brota, no meio algo (não) acontece e depois se dissipa no espaço. É a reorganização do olhar, a dramaturgia coreográfica e o jogo com as formas-cores-silhuetas-imagens que instauram um acontecimento cênico sem os muros convencionais do teatro. A música, magistralmente composta e operada por ViniTheKid passa de uma sonoridade paisagem para uma batida de festa comum que insiste em mover todo mundo por repetição. Em alguma medida, parece, de fato, que não há nada… não há espaço, não há atores, não há história, não há música, não há cenário, não há nada que diferencie demais eles de nós… e o que acontece a partir desse nada?

Foto de Wilson Julião

 

O acontecimento

Daniel Guerra, crítico da Revista Barril (BA), escreve que “o ser da cena é o acontecimento”, algo que se instaura na relação. Ao invés da obra-objeto acabada que dar-se à visão do espectador, algo emerge em um encontro peculiar, que pode ser interativo ou não, mas cuja forma só se define na recepção em si. O teatro, tão frequentemente delineado a partir de um mito do encontro ou do ritual ou ainda a partir de uma estrutura arquitetônica determinada (e em uma cidade que possui um Theatro Municipal como o de São Paulo, isso alcança outros patamares imaginários), pode ser levantado a partir de outras forças que citam essas duas anteriores sem materializá-las propriamente. 

Quando uma obra demonstra que pode surgir espacialmente a partir das relações de deslocamento propostas entre público e performers, notamos que há estruturas invisíveis que nos rondam e nos compõem como as sonoridades, as hierarquias, as repetições, as semelhanças e diferenças, os padrões, os choques e encaixes. Ou seja, apesar das materialidades, os afetos que sentimos diante dos corpos-espaços-tempos são mais produzidos por nossas imaginações e capacidades associativas do que por algo que emerge das coisas em si. Os objetos refletem os afetos que projetamos sobre eles. Apresente qualquer menor sinal desse mesmo objeto e o afeto pode ser intensamente restaurado. 

É por isso que “Rito qualquer…” se instaura como obra e acontecimento. Porque não há nada, mas ao citar qualquer coisa, um todo já se estabelece. 

Enquanto o Teatro da Matilha fazia acontecer o “Rito qualquer…” na área de convivência do SESC Pompéia; o Teatro da Vertigem tenta fazer acontecer a “Agropeça” no Galpão. Duas obras com orçamentos radicalmente opostos. Uma com nada, outra com tudo. Enquanto a obra de um dos grupos de teatro mais consolidados do país se instaura sobre o excesso de citações, materialidades, respostas e figuras; do outro lado, um dos grupos mais jovens de São Paulo se desfaz dessas identificações e ergue o acontecimento pela presença. Se uns mais velhos pensam saber muito, uns mais novos sabem que não sabem nada. Excessos de certezas nos desmontam, mas algumas dúvidas podem nos erguer. 

I'm not trying to cause a big sensation

Just talkin' 'bout my generation

The Who

 

O rito

O rito consiste em um conjunto de gestos e regras sociais, repetidos ao longo de gerações, que podem gerar uma sacralização ou reiterar algum aspecto cultural. O rito promovido pelo Teatro da Matilha não tem os contornos caricaturais que evocamos do nosso imaginário e estão mais próximos do nosso cotidiano do que de certos aspectos religiosos. O que vemos na peça são corpos pouco definidos que se cumprimentam, seguem uns aos outros, se organizam e desorganizam, alternam-se, apoiam-se; como uma coreografia de relações e gestos sociais de interação e desarticulação que promovem - por vezes inconscientemente - nossas estratégias de individualização e pertencimento. 

Esse rito não promove absolutamente nada além da própria manutenção, reorganização e distribuição. Em algum momento, parece que estamos observando um amontoado de vírus ou bactérias por lentes microscópicas que se dinamizam como modo de sobrevivência. Mas, tudo isso, não nos impede de projetarmos representações, significações e outras leituras sobre as paisagens políticas e relacionais que são desenhadas. É comum observar uma dinamicidade irracional apoiada em uma estrutura consciente e, em certa medida, sustentável.

 

O qualquer

É possível aproximar a palavra qualquer no título, do sentido dado a ela pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. Neste caso, qualquer não se trata de algo meramente indefinido, mas sim de uma potência outra. Ao delinear o ser qualquer, Agamben busca construir uma percepção de sujeito que não seja nem individual e nem universal. Não vou tentar definir o conceito de Agamben nesta crítica e nem dizer que o Teatro da Matilha apenas materializa o conceito (o que não seria verdadeiro), mas apenas sinalizar que há um abismo conceitual e prático para onde tanto a filosofia de Agamben, quanto a obra “Rito qualquer…” nos lança [para saber mais sobre esse conceito, sugiro a leitura do artigo de Pedro Hussak comentando o livro “A Comunidade quem Vem” de Giorgio Agamben”]. A questão é que, a partir de uma discussão política efervescente que tem levantado questões teóricas e estéticas acerca das ideias de identidade, representatividade e outros contornos da singularidade, como lidamos com a já sabida indefinição, instabilidade e mutabilidade dessas mesmas categorias de pertencimento? Diante de tantos movimentos de reafirmação, que acontecimentos são promovidos por obras que sugerem uma negação?

I would prefer not.

Bartleby

 

A compreensão de que todo o caráter ético da existência não está na realização de uma vocação ou destino histórico, coloca a ética na dimensão da pura possibilidade.

Pedro Hussak.

 

O eu… de novo

Se o status da representação segue em crise na arte, segue também porque, muitas vezes, aparece imbuída do próprio julgamento do artista sobre a imagem representada. A representação, portanto, já não mais espelha algo da realidade, mas projeta um significado pré-determinado sobre ela. Te mostro A sob o contorno de B para que você compreenda aquilo que eu defini sobre A; ao ponto em que B seja o novo conceito-nome de A e passemos a nos relacionar com o mundo a partir dessa orientação estética. É um puro deslocamento de paradigma. 

Talvez, para pensarmos a arte como laboratório e tomarmos a realidade pela sua complexidade e incerteza, não nos interesse tanto a representação de uma identidade, mas sim a apresentação dos processos de (des)identificação. As artes da cena, pela sua qualidade de movimento, possui o trunfo de mostrar a (de)composição das imagens, muito mais do que apenas sua plasticidade ou relações semióticas (sem, necessariamente, abandonar essas duas características).

Nesse mesmo mês (junho de 2023), outro grupo brasileiro estreia uma obra que parece habitar esse mesmo campo de discussão, o Grupo Cena 11 (SC) com “Eu não sou só eu em mim”.  

Identidade e comunidade são zonas em permanente conflito, situações-paradoxo. A questão é que perceber uma dissolução do eu pode fazer emergir estados transitórios de identidade e de comunidade e é, possivelmente, aí que que se elabora qualquer campo ético. O Teatro da Matilha nos devolve a nossa própria imagem, as paisagens de nossas relações de forma estranhada (animalesca, cômica, esvaziada) e, portanto, borra nosso processo de identificação. Pareço com isso, mas não sou exatamente assim, mas nisso ainda me vejo. O que surge dessa experiência estética é uma curiosidade… observo a imagem e penso, é então assim que me organizo? A experiência da completa identificação que serve a alguma lacuna narcisista abre espaço para uma possibilidade analítica de um esquema de nós mesmos. 

 

Ainda temos muito a desnaturalizar.

 

Clique aqui para enviar seu comentário