Por Heloísa Sousa
27/06/2023
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Entre os meses de maio e junho de 2023, o Grupo Cena 11 (SC) realizou uma série de atividades no SESC 24 de Maio, na capital paulista, incluindo a estreia de seu último trabalho intitulado “Eu não sou só eu em mim (Estado de Natureza - Procedimento 01)”. O grupo que possui uma longa trajetória de pesquisa em arte e dança contemporânea, apresenta a materialização cênica dos experimentos em torno de suas últimas questões a partir do livro “O Povo Brasileiro” (1995) do antropólogo Darcy Ribeiro.
Anos antes, em 2019, a crítica de dança Deise de Brito escreve o texto “Quem tem o privilégio de reivindicar a singularidade” a partir da apresentação do espetáculo “Protocolo Elefante” do mesmo grupo, durante a 6a edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Retomo essa crítica porque, já dessa obra, é notável o interesse do Grupo Cena 11 e de seu diretor Alejandro Ahmed, pelos processos de identificação, singularidade e coletivização. Esses conceitos e práticas parecem campos de pesquisa emergentes para esses artistas e que evidenciam não apenas um interesse pontual e individual, mas sim uma urgência em relação aos assuntos que atravessam a materialidade da cena contemporânea em níveis estéticos e políticos. Diante da obra citada e apresentada em 2019, Deise de Brito ressalta a ausência de pessoas negras no elenco da obra e as lacunas em relação à recepção e às identificações a partir desse fato.
A identidade é uma encruzilhada. E o é porque faz convergir a ideia de individualidade, singularidade e comunidade, onde cada uma dessas palavras parecem vetores vindo de direções distintas e se chocando em algum ponto. Para além disso, não se trata apenas de uma questão subjetiva, onde cada ego lida consigo mesmo em sua trajetória de vida; esses processos que geram “identidades” possuem fortes raízes políticas, sociais, econômicas, culturais e históricas; por vezes regadas de violências e projetos de apagamento. As identidades dos sujeitos, as identidades nacionais, as identidades de uma comunidade, as identidades como contornos cujos limites são disputados e milimetricamente calculados a fim de potencializar ou despotencializar certos corpos. Nesse sentido, tanto a pura negação quanto a pura afirmação das identidades parecem vacilos que cerceiam qualquer possibilidade dialética fundamental para pensar uma ética e outras políticas. É nesse campo minado que o Grupo Cena 11 parece apoiar suas recentes pesquisas e criações. Mas, não apenas eles. Percebo inquietações semelhantes nas últimas obras do Teatro da Matilha (SP) ou até mesmo no Estudo N.2 - Miró do Grupo Magiluth (PE), por exemplo; ao mesmo tempo, que percebo outras encenações apresentadas na capital paulista que parecem ainda insistir em duras categorizações que apenas reiteram julgamentos já sabidos e não nos revelam nenhum processo de formação peculiar.
Se em “Protocolo Elefante” a ausência de pessoas negras é evidente. Em “Eu não sou só eu em mim” a multiplicidade é fator imperativo; não apenas pela racialidade, mas também por gênero e faixa etária. Embora haja corpos diversos no palco, ainda assim, estamos diante de um inevitável recorte. Partir da leitura do livro de Darcy Ribeiro, parece um modo de enfrentar diretamente a questão apontada por Deise na obra de 2019, mas não como um gesto de reparação e sim em uma atitude de continuar questionando.
Nessa obra de 2023, os intérpretes entram no palco realizando um único passo repetitivamente. Esse único passo se adapta de diferentes modos aos diferentes corpos e, principalmente, se transformam radicalmente ao longo da encenação. Evidencia-se uma possível raiz. Entretanto, antes disso, o som - o deslocamento - a antecena. Esse ponto inicial permanece incógnita. Em outra crítica de dança publicada neste site, me questiono sobre o que dança a dança, sobre qual operação estético-política é feita a partir desse verbo-linguagem. O Grupo Cena 11 nomeia sua obra como “um contraponto anarco-coreográfico sobre o conceito de ‘povo brasileiro’”; dançar um conceito, que é por si só uma zona de tensões (se pensarmos a partir das teorias de Gilles Deleuze), e tornar-se uma dança-filosofia. Que operações sócio-políticas podem ser analisadas, percebidas e esquematizadas a partir de uma obra em dança?
“Eu não sou só eu em mim” demonstra como as coisas parecem surgir mais por variação e combinatória do que por pura origem. O mundo como uma autocomposição contínua, fractais que produzem diferenças (paradoxo). Talvez, por isso, nós nos interessamos tanto pelas genealogias, arqueologias e etimologias; o exercício curioso de retroceder, olhar para trás e perceber o percurso de cada coisa. Entretanto, o que notamos é que muitos percursos são tão extensos que suas origens exatas se perdem, o início está perdido. E somado a esse processo, ainda precisamos lidar com as rupturas dos fios desse percurso, que falseiam uma origem, mas, na realidade, são apenas fragmentos.
A obra parece ser composta de um único movimento, um passo para fazer surgir todos os outros. A sonoridade repete esse procedimento. Tenho pensado sobre isso, sobre “quantas cenas são necessárias para criar uma encenação”. Ao invés de pensar uma obra como uma pulverização de cenas distintas a partir de um tema (o que faz o tema ser a matéria principal e as cenas tornam-se ilustrações do mesmo); como seria pensar uma obra como uma pulverização de uma cena só (e dessa forma, tomar a própria materialidade cênica como ponto de partida, como matéria principal). Ao invés de observar a obra cênica como uma sequência de quadros enfileirados lado a lado (horizontalidade); poder observar a obra cênica como um único quadro em perspectiva e permitir que o olhar analise as infinitas camadas desse único quadro (verticalidade).
Dois processos são evidentes aqui: identificação e artificialização-naturalização. Uma das maiores inquietações de Darcy Ribeiro era por tentar compreender o que é o povo brasileiro. “Meu sentimento é de que nos faltava uma teoria geral, cuja luz nos tornasse explicáveis em seus próprios termos fundada em nossa experiência histórica. As teorizações oriundas de outros contextos eram todas elas eurocêntricas demais e, por isso mesmo, impotentes para nos fazer inteligíveis. Nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente não era necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futuro comum” (RIBEIRO). Essa tentativa por compreender o que seria nossa nacionalidade, se repete e vacila em diversas ações culturais; ao mesmo tempo, que o reconhecimento do Brasil como uma ferida, como uma ficção fincada em um processo de colonização genocida é um desconforto latente. Ribeiro já destacava em suas pesquisas o quanto a miscigenação em nosso país é imperativa, nos forma e concomitantemente nos apaga. Essa crise entre o reconhecimento das diferenças e uma necessidade de uniformização não alcança soluções, nem aponta imaginários pacíficos. Em “Eu não sou só em mim”, tanto o comum quanto a diferença se conflitam, se reorganizam, se divergem; no máximo, é possível alguns acordos éticos, mas a uniformização é apenas mais um traço de desejo colonial que precisa ser enfrentado. Ao mesmo tempo, em que as identidades forjadas por esse mesmo processo precisam ser questionadas, Deise de Brito, em sua crítica, destaca como a branquitude inventa as segregações identitárias para nomear a si mesmo universal e ao outro como eterno estranho e submisso.
Somado a tudo isso, outros processos mais artificiais ainda geram novos contornos para nossas imagens. Os procedimentos conduzidos por inteligências artificiais que geram versões imagéticas e sonoras de nós mesmos, repetindo e variando, são agregados à experiência estética da obra do Grupo Cena 11. Nesse caso, essas composições parecem escapar dos nossos agenciamentos, ao mesmo tempo que partem de nós mesmos. Uma proliferação projetada e descontrolada, partindo do início do passo único com o qual os intérpretes adentram o palco do SESC 24 de Maio.
Mesmo alcançando quase a metade do século XXI, parece ainda haver na arte alguns desejos e interesses pelos campos enfadonhos e delirantes da originalidade, ou ainda mais, da ideia de que a arte deve apresentar aquilo que não é óbvio. Entretanto, penso que a arte não precisa tentar escapar da obviedade, na realidade, deveríamos até enfrentar o mistério que o óbvio nos oferece; a arte precisa é tentar estranhar toda e qualquer naturalização, seja ela de ordem conceitual, política, afetiva, estética. E estranhar o natural parece ser um dos lugares de criação atual do Grupo Cena 11. Se eles alcançam nesse processo o que seria uma “dança brasileira” é algo meio impossível de responder, o próprio grupo parece centralizar essa questão como uma pergunta irônica. O mais interessante é perceber que, ao tentar enfrentar esse ponto, o que se cria no palco é uma rede de transformações sucessivas e que mira um infinito.