Por Quemuel Costa
29/06/2023
“A memória é uma ilha de edição”
(Waly Salomão)
Uma mulher de costas com várias bolsas nos braços e ombros. Cada bolsa tem uma estampa diferente, em sua maioria com flores e cores saturadas. Ela está em um canto do palco e a iluminação demarca um grande quadrado sobre o seu corpo e o espaço. Dentro dos limites desse quadrado ela se movimenta e dança com as bolsas, de vez em quando deixando que uma caia sobre o chão. Essa é a primeira imagem que vejo ao entrar na Casa da Ribeira para assistir “Auto-retrato”, obra de Erika Rosendo (RN) com direção de Jussara Xavier (SC).
“Auto-retrato” pode ser percebida como uma colagem de coreografias da trajetória da artista da dança Erika Rosendo. De modo geral ela acontece na seguinte estrutura: a artista faz uma fala contextualizando alguns momentos de sua vida e como estava se relacionando com a dança neles e em seguida dança um trecho de uma coreografia criada por ela ou por algum(a) coreógrafo(a) nesses períodos. A maioria dessas coreografias já foram dançadas por Erika no passado. Sendo assim, oralidade e dança são os principais elementos que a artista utiliza para tratar sobre memória e dançar o que chamarei aqui de coreografia-memória.
Ao dançar novamente uma coreografia criada e dançada no passado, Erika Rosendo materializa através de seu corpo a memória desta, ao mesmo tempo que a recria, fazendo com que o público conheça as coreografias-memórias que compõem sua carreira e, principalmente, seu corpo, que durante a obra é referido como “um arquivo cheio de memórias”. Me refiro a esses momentos de dança e recriação como coreografia-memória porque me parece impossível separar as duas palavras ao escrever sobre o trabalho da artista, pois ela afirma que antes de recorrer a gravações das coreografias ou a artistas que dançaram com ela, a primeira estratégia que utilizou para lembrar das coreografias foi se debruçar sobre o próprio corpo, estabelecendo assim o corpo como principal lugar da memória.
A maneira que as coreografias-memórias aparecem mostram uma curiosa relação entre tempo e memória, pois elas são dançadas sempre de maneira muito breve, não durando tempo suficiente para que gere, em quem assiste, uma conexão. Então a sensação que perdura depois da maioria das coreografias-memórias, mesmo sendo muito diferentes uma das outras, é de que não houve tempo para criar uma relação. Essa brevidade ao nos mostrar as coreografias vão criando um certo distanciamento, o que gera ruído sobre a intenção da obra, uma vez que através da fala direcionada ao público ela tenta estabelecer uma aproximação, mas ao subir no palco para dançar o faz de maneira tão breve que pergunto: como me relacionar com esse lugar tão sensível que é a memória do outro se a materialização da coreografia-memória é feita de maneira tão rápida?
Por sua vez, os momentos de oralidade se mostram como um dos pontos de maior fragilidade da obra. Talvez pelo esforço físico de falar logo após dançar, muitas das vezes a artista fala de maneira muito rápida e ofegante, o que pode ser lido como um gesto para enfatizar a urgência que ela sente em lembrar e trazer foco sobre a memória. Mas de maneira geral e principalmente quando em alguns momentos a fala é tão apressada que atropela as palavras e não permite que seja possível entender o que está sendo dito, prevalece a sensação de que há uma falta de domínio com o trabalho de preparação da palavra para a cena. No entanto, é também através da oralidade que acontece um dos momentos mais sublimes da obra, no qual ela nos pede para o público fechar os olhos e nos pergunta se lembramos da última vez que fizemos algumas coisas, entre elas segurar a mão de alguém ou receber um abraço muito apertado. Nesse momento, ao não lembrar da última vez que fiz algumas das coisas elencadas pela artista, compartilhei com ela a sensação de querer lembrar, assim como a frustração diante do esquecimento.
Ao ler “Auto-retrato” a partir da frase de Waly Salomão, é possível perceber algumas particularidades sobre a edição que a artista faz sobre as próprias memórias, e também em certo nível, sobre a memória da dança potiguar. As coreografias-memórias trazidas para o palco parecem estar sempre associadas às boas recordações. Até mesmo quando ela fala sobre as dificuldades que passou por conta do seu quadro de hiperidrose ou sobre a fase em que “esteve na pindaíba” é em um tom de algo que foi elaborado e superado, como uma espécie de positivação do passado. Assim como na primeira imagem na qual a artista dança com uma luz que desenha e delimita sobre seu corpo um quadrado, há uma delimitação na forma que a obra lida com a memória: em “Auto-retrato” só é dançado o que se quer lembrar. Mas se debruçar sobre a memória não é também lidar com o que se quer esquecer? Se debruçar sobre a memória não é também se deparar com o apagamento e o esquecimento? A memória também não é constituída pela contradição?
Assisti “Auto-retrato” na Casa da Ribeira, que fica localizada no bairro da Ribeira, local histórico da cidade, mas que é constantemente desprezado pelo poder público e também pela memória coletiva, o que trouxe uma camada a mais ao trabalho. Apesar de sempre partir de sua individualidade, muitas das coreografias-memórias dançadas por Erika abarcam a memória coletiva da dança em Natal, principalmente quando ela se refere a EDTAM (Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão) e a CDTAM (Cia de Dança do Teatro Alberto Maranhão), espaços formativos pelos quais passou e que também se localizam na Ribeira. Ainda que sozinha no palco, ao dançar, Erika traz à tona o trabalho de outros artistas. E acaba por mostrar a necessidade da coletividade, pois apesar da ação de dançar novamente uma coreografia criada em grupo ter um caráter simbólico em relação a memória desses espaços, as coreografias-memórias que foram criadas em coletivo e agora são dançadas sozinhas soam deslocadas na configuração solitária da obra, gerando uma sensação de incompletude. Talvez consciente disso, em uma dos últimos momentos a artista realiza uma tentativa de desaguar na coletividade: caminha pela plateia tirando selfies com o público e entregando cartões postais para ele, utilizando esses dois meios para criação e registro de memórias.
Como uma das últimas ações da obra, Erika Rosendo retorna da plateia para o palco com um vestido diferente. Ao vê-la com um vestido de renda lilás que permite ver muito de sua pele, lembro de uma das suas falas sobre um figurino do passado que a incomodava pois a fazia se sentir com o corpo muito à mostra, mas que tinha sentido pois a intenção dele era significar a falta de privacidade. Aqui o figurino de renda que também deixa o corpo à mostra parece ser uma consequência da escolha em tornar públicas as próprias memórias, como um gesto próximo ao de se desnudar. A artista gira sobre o palco enquanto a luz vai se apagando. Voltando à principal forma de criar memória e deixar rastros no tempo: o corpo e seus movimentos.
Fotos: Divulgação.