Por Diogo Spinelli
06/07/2023
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
No último dia de junho deste ano pude assistir à apresentação de Sobrevivente, novo trabalho da atriz Nena Inoue (PR), como parte da programação da edição 2023 do FILO – Festival Internacional de Londrina. A obra, estreada recentemente no Festival de Curitiba, conta com direção e dramaturgia de Henrique Fontes, integrante do Grupo Carmin (RN).
Sobrevivente é uma obra que se insere na linhagem do teatro documentário, tendo como ponto de partida a busca da atriz por encontrar vestígios sobre as histórias de vida de seus familiares, e através destas, entrar em contato com – ou reconstituir, ou recontar, ou ainda, inventar – sua ancestralidade.
Seguindo o que se tornou certo clichê para obras nesse formato, vemos ao fundo do palco uma projeção na qual são apresentados documentos que ajudam a compor a dramaturgia visual/factual da obra. Mesmo sendo eficiente, e contribuindo para localizar a narrativa geográfica e historicamente em algumas passagens, o uso desse recurso repete modos de utilização já vistos inúmeras vezes em trabalhos de formato similar, gerando, a princípio, certa sensação de déjà-vu.
Além disso, sobretudo no início da obra, a narrativa visual das projeções acaba, por vezes, competindo com a atuação de Nena. Calcada na comunicação direta com o público e fincada na tradição oral, essa atuação se valoriza quando podemos focar nossa atenção exclusivamente na atriz e em seu poder de enunciação, ou nos momentos em que – como na radionovela – narrativa oral e narrativa visual caminham lado a lado.
Pois, ainda que a cena seja preenchida por documentos e imagens, e que haja uma interlocução que cresce à medida que o espetáculo avança entre Nena e Pedro Inoue, seu filho, que é o responsável por manipular as imagens que compõe a dramaturgia visual/documental da obra e por outras intervenções pontuais, é na própria Nena, em seu carisma e em sua capacidade de fazer com que nos sintamos cúmplices e identificados com ela, que a obra se ancora e tem ao mesmo tempo seu grande mérito.
Desse modo, não se trata de rejeitar o recurso da projeção ao fundo do palco por uma sede pelo “novo”, mas de se pensar que outras maneiras de compartilhamento de materiais documentais casariam mais com a intimidade que Nena constrói e propõe ao público desde o começo do espetáculo e que permanece ao longo de todo o trabalho. Ainda mais se pensarmos que as barreiras entre verdade e ficção já há muito foram borradas no teatro documentário, e que a exibição de documentos de forma digitalizada vem perdendo cada vez mais o caráter de comprovação de realidade, em tempos de popularização e utilização em massa de deepfakes e imagens geradas por Inteligência Artificial.
Com um figurino que remete à sua ancestralidade oriental herdada por parte de pai, Nena nos conta que há duas raízes, dois caminhos para se contar essa história, sendo o primeiro deles aquele justamente ligado à figura paterna, de onde provem seu sobrenome: Inoue.
Na pesquisa para fazer a obra, Nena encontra um antigo colega de universidade de seu pai, que escreveu um livro de memórias no qual existe um capítulo dedicado exclusivamente aos pais da atriz. A existência desse documento – que faz com que Nena se depare com uma visão sobre seus progenitores até então desconhecida por ela – reitera uma das linhas de força da dramaturgia, vinculada ao fato de que a história dos homens sempre foi contada, em detrimento à das mulheres, inúmeras vezes negligenciada.
A discussão sobre esses apagamentos históricos e sua perpetuação até a atualidade – tanto das mulheres quanto dos povos originários, que será abordado no segundo momento da encenação, mas que podem ser ampliados a tantos outros impostos àqueles e àquelas que saem do padrão do homem cis hétero branco – verificados a partir das experiências pessoais de Nena e de sua família, se expandem para que possamos [re]pensar a sociedade como um todo.
Nesse sentido, a obra se vincula a várias outras apresentadas na programação do FILO, dentre as quais pude presenciar as performances Bagagem, de Shambuyi Wetu (República do Congo), e Mil litros de preto – a maré está cheia, de Lucimélia Romão (BA), e os espetáculos Karaíba: um musical originário, produção do Rio de Janeiro, e Abrazo, dos Clowns de Shakespeare (RN).
Voltando à Sobrevivente, as desventuras argentinas do jovem casal apaixonado são o principal mote deste primeiro caminho, que ocupa cerca de dois terços do tempo da obra – contraditoriamente, por haver mais registros sobre esse lado da história, ele acaba por ocupar também um maior espaço dentro do espetáculo, reiterando de certo modo a lógica do que se gostaria de criticar.
Apesar do prazer e do interesse gerado pelos quiproquós apresentados nessa primeira parte do trabalho, é no terço final, quando começamos a acompanhar a trajetória de Nena em busca de suas raízes maternas, que a obra se aprofunda nas discussões sobre hereditariedade, pertencimento e apagamento. Nena nos conta que muito recentemente começou a ser identificada por outras pessoas não apenas como descendente de japoneses, mas também como possível descendente de indígenas.
A partir de então, Nena inicia uma busca por tentar investigar suas origens maternas, seja através das parcas lembranças que possui e dos poucos parentes que ainda estão vivos e poderiam ajudar a elucidar o enigma, seja através de um método científico, ao submeter-se a um teste de mapeamento genético. Esse percurso é permeado por inúmeras reflexões sobre o lugar de identificação racial no Brasil que, se perpassam de modo geral todos os brasileiros e brasileiras, atingem de maneira particular aqueles e aquelas que, ainda que se reconheçam como frutos da miscigenação, tiveram negado o acesso às suas matrizes negras e indígenas, sobrando apenas para serem contadas as histórias [e os sobrenomes] dos conquistadores/imigrantes brancos europeus – e, como no caso de Nena, asiáticos.
Do medo e dos incômodos de se declarar algo que não se é ou pode não se ser, e de ocupar um lugar de fala que pode ou não lhe pertencer, ao desejo de conhecer, assumir e propagar essa história que, como tantas outras, de tantos povos, segue até hoje sob ameaça constante de ser exterminada, acompanhamos Nena nessa jornada de investigação da história das mulheres da sua família, que é também uma jornada de autodescoberta, até chegar à sua avó: Maria Cândida, falecida aos 30 anos, com metade da idade da atriz, possivelmente pertencente ao povo Paiaguá. Nena converte então Sobrevivente no documento dessa história – não apenas nas passagens em que assume a figura da avó para dar-lhe voz, mas na obra como um todo.
Na cena final, despida do figurino oriental, vemos no corpo de Nena a presença de um Brasil de encruzilhadas, que nos incita a pensar nos nossos povos originários não como memória, mas como presente, em constante luta por sobrevivência.
Crédito das fotos: Humberto Araújo