Duros caminhos para a comunicação

Por George Holanda
10/02/2017

A trajetória do escritor japonês Kenzaburo Oe na convivência com seu filho, portador de uma deficiência cerebral, é contada no espetáculo OE, mais um trabalho solo do ator Eduardo Okamoto, desta vez com direção de Marcio Aurelio. Com poucos elementos, entre eles uma esteira e uma faca, a cena é povoada pela palavra, dita com expressividade por Okamoto. E a palavra é o meio pelo qual Kenzaburo Oe utiliza para se comunicar com seu filho. Uma comunicação muitas vezes falha e que cava um abismo entre eles. Sentimentos de rejeição e frustração pautam a relação, a ponto de se nutrir um desejo da morte do outro, o que é indicado na primeira fala do pai e numa das primeiras do filho, ao dizer que o pai está morto (mesmo estando vivo). O terno preto utilizado pelo ator como figurino não deixa de remeter a um sentimento de luto que percorre o trabalho.

Okamoto, além de fazer as personagens do pai e do filho, também faz a mãe (papel coadjuvante na peça) e um narrador, este comentador das relações, assim como o próprio pai. O ator transita entre essas personagens e comenta o que se passa, num percurso que também inclui referências e reflexões que não se prendem tão somente àquele ambiente familiar, como fez Kenzaburo Oe na sua obra e na qual se baseia o espetáculo.

Não deixa de ser irônico que a personagem do pai, como escritor que é, enfrente um problema de comunicação com o filho, ainda que seu talento com as palavras seja utilizado como instrumento para acessar o universo do filho, como quando ele cria um dicionário bem pessoal como legado para seu descendente. A comunicação proposta pelo pai, que pode ter um viés de elaboração racional diante da sua especialidade, é afrontada pela fala e pelo comportamento do filho, que ultrapassa a compreensão habitual das coisas, levando a figura paterna a descobrir naquele singularidades que o encantam, como um inusitado caráter espiritual. O filho também desperta o pai para características comuns entre ambos, como a impulsividade, que fez este último levar a ambos a uma montanha com risco de tempestade. Assim como existem momentos de diferenciação e negação, passam a existir também de aceitação e compreensão das diferenças, num processo que tem a comunicação como campo de experiência.

E se a troca entre eles se dá ainda que sobretudo pela palavra, a encenação não se limita a esta, utilizando também o corpo na construção da obra. E o corpo de Okamoto está presente em todo o trabalho. O ator, que tem uma história no teatro físico, como visto em seus solos anteriores, tem nas suas ações informações que ora se associam à palavra dita, ora não, o que amplia seu significado, num gestual que, ao não se adequar ao que é dito, possibilita novas compreensões. O momento em que o filho entra em crise na cozinha e pega uma faca ilustra bem isso, pois Okamoto, sentado e segurando a faca em posição de perigo durante toda a cena, transita entre os personagens vivendo e narrando todo este momento, mantendo uma tensão que vai além do que é dito e apontando para a situação limite daquela relação.

Mas se a idéia de uma relação intensa como esta pode remeter a um tom passional, o espetáculo opta por um caminho de distanciamento, em que não se vive um mergulho no sentimento, mas se experiencia a história a uma certa distância. Os 28 (vinte e oito) momentos que compõem a dramaturgia do espetáculo são pontuados e contados, interrompendo a todo momento um fluxo que poderia nos levar a uma catarse. Também a fala é dita com tamanha articulação que constrói uma expressividade intencionalmente não natural. A comunicação com o público se dá pela constante lembrança da encenação que se assiste e não pelo drama contado. Nisso se sacrifica o compartilhamento da sensação que a cena mostra, especialmente ao final do espetáculo, quando este passa a flertar com uma maior sentimentalidade. E como o pai que vivencia um vão entre si e seu filho, assistimos a tudo com a mesma distância e desesperança em nos aproximar.

 

Ficha Técnica

OE

Encenação, iluminação, figurino e cenografia: Marcio Aurelio

Atuação: Eduardo Okamoto

Dramaturgia: Cássio Pires, inspirado na obra de Kenzaburo Oe

Assistência de direção: Lígia Pereira

Assistência de iluminação: Silviane Ticher

Orientação corporal: Ciça Ohno

Assistente de figurino e cenário: Maurício Schneider

Orientação pedagógica do projeto: Suzi Frankl Sperber

Coordenação técnica: Silvio Fávaro

Direção de produção: Daniele Sampaio e SIM! Cultura

Assistência de produção: Mariella Siqueira

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