Comentários sobre "Memórias Tortas de um Lugar Invocado"

Por Quemuel Costa
27/02/2024

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

1. 

O experimento cênico "Memórias tortas de um lugar invocado" é fruto de mais um Laboratório da Cena, curso intensivo de duas semanas realizado anualmente pelo grupo de teatro Clowns de Shakespeare desde 2016, no qual são abertas inscrições para quatro áreas: atuação, direção, dramaturgia e produção. Juntos, os participantes das quatro áreas vivenciam um processo criativo que resulta na apresentação pública de um experimento cênico. O processo deste ano traz uma especificidade: pela primeira vez desde 2016 ele não é realizado em Natal, mas no Solar Ferreiro Torto em Macaíba, região metropolitana da capital. É a segunda vez que o Laboratório não é realizado na sede do grupo, tendo sido a primeira vez ano passado na Cidade da Criança. O Solar Ferreiro Torto hoje é um museu tombado com um grande casarão rodeado por um parque com muita natureza, árvores, mangues e o rio Jundiaí. Originalmente foi construído por um coronel e já funcionou como engenho de cana-de-açúcar. A primeira vez que fui ao local foi dia 04 de fevereiro para assistir o experimento cênico do Laboratório da Cena 2024, sobre o qual escrevo esses comentários.

 

2.

No início do experimento há a distribuição de fitas em três cores diferentes que dividem o público em três grandes grupos, a cor da fita determina qual personagem irá nos guiar. Recebo uma fita preta e passo a seguir uma personagem que não recordo o nome, mas que afirma que quem ficou com ela adora compras e liquidação. O experimento é itinerante, acontece ao ar livre e a condução é feita por figuras que, ao longo da narrativa, entendemos como caricaturas dos colonizadores: uma mulher que nos diz que tudo está à venda; um caçador que persegue um cavalo e um militar atrapalhado com forte sotaque “estadunidense”. Ao longo do experimento somos conduzidos por todos eles pelo menos uma vez. O primeiro olhar que meu grupo é convidado a lançar para o Solar Ferreiro Torto é de consumo, pois a personagem nos diz que tudo que estamos vendo pode ser comprado, desde a tenda estendida para gerar sombra até as árvores plantadas ali. Apesar disso, as cenas pelas quais somos conduzidos vão se contrapondo a essa lógica de consumo e dominação, criando contranarrativas, pequenas desobediências à história oficial ou aos detentores dela e da terra (como a vendedora de dindin que grita que não é porque a personagem que nos guiou herdou aquelas terras que pode vendê-las, que antes do tataravô dela chegar já haviam outros seres e animais), ainda que essa oposição venha de figuras também muito esdrúxulas e grotescas: uma mulher mascarada sentada numa cadeira que nos oferece pedrinhas para jogar no rio e fazer pedidos; uma idosa que passeia de bicicleta pelo parque enquanto vende dindins sem verificar se os clientes estão de fato pagando; uma rasga mortalha idosa que lamenta só poder anunciar a morte e parece enfrentar dificuldades em suas faculdades mentais, apesar de ter lapsos de muita lucidez - ou de assustadora loucura. 

 

3.

O Solar Ferreiro Torto é um lugar construído por ordens de um militar durante o período colonial e já teve escravizados trabalhando lá. É um desses lugares em que há muitas histórias sobre assombrações e má energia, afinal é um lugar com um passado de violência e exploração de corpos negros e indígenas. Apesar disso e do experimento tratar-se de um site specific, as histórias que vamos acompanhando são todas carregadas de muita alegria e humor, não havendo nenhuma que faça menção a esse passado de brutalidade. O que me leva a refletir: não seria esse um gesto de apagamento em algum nível? Uma vez que nem é dada ao público a possibilidade de se relacionar com esse passado escravocrata através do experimento. A única via é a ressignificação, mas se o público não sabe sobre a história do lugar, ele consequentemente também não enxerga o gesto de ressignificação e imaginação realizado pelo experimento. A alegria das cenas é muito demarcada na caracterização dos personagens, que se apresentam todos com muitas cores fortes, brilhos e plumas, além de muitos representarem bichos. A junção disso com a energia brincante que as atuações evocam transformam muitos momentos do experimento em um verdadeiro carnaval de cores dentro da mata. Talvez por isso em nenhum momento somos convidados para adentrar o casarão e a única cena que acontece nele é na sacada. Chama também a atenção e o enfoque na palavra e na narração. O grupo Clowns de Shakespeare é muito conhecido pela presença da música feita ao vivo nos seus espetáculos, o que acontece muitas vezes nos experimentos do Laboratório também, mas aqui isso quase não ocorre, o enfoque estando na palavra falada. Narrar é poder. 

 

Foto: Fábio Moura

4.

“E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.” (Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, p.27, 2019)

 

5.

Em uma das cenas (a única com todos os personagens juntos), há o nascimento de uma criança em frente ao casarão amarelo no Solar do Ferreiro Torto. Um dos personagens anuncia que a rainha virá visitá-la, então uma mulher negra com vestido vermelho e turbante amarelo aparece na sacada de uma das janelas do primeiro andar. Assistimos essa cena com a cabeça levantada para podermos ver a rainha, elevada a alguns metros da altura em que estamos. Assim como nas outras cenas, há aqui alguns deslocamentos contra a narrativa oficial, pois estamos em um território colonial e que já funcionou com o trabalho forçado de pessoas negras escravizadas, então ver uma atriz negra em uma posição de poder demonstra um gesto de ressignificação por parte da obra, além da sua visita ser bastante peculiar: ela não fala, apenas dubla e dança a música Pensada Violenta de Caboclo de Cobre, Ramón Velásquez e Laís Machado, sendo esse o seu presente para o recém nascido. Apesar da bonita imagem e do considerável gesto, a cena acaba por soar deslocada, a entrada da rainha parece descontextualizada e não se justifica para além da tentativa do experimento em continuar a ressignificar o espaço, o que até poderia ser o suficiente, não fosse a seguinte contradição: mesmo sendo uma rainha negra, a lógica monárquica e colonial continua: ela aparece apenas como símbolo de poder diante dos plebeus, não cria relação, se mantém distante e some após entregar seu lacre. 

 

6.

A maneira que a condução do experimento é construída faz com que a maioria das cenas aconteçam simultaneamente e se repitam pelo menos três vezes, uma vez para cada um dos três grupos que foram divididos pelas cores das fitas. Apesar de ser um espaço bastante amplo, muitas vezes enquanto estamos assistindo uma cena conseguimos ver outra cena acontecendo ao longe ou um dos grupos sendo conduzidos de um lugar a outro, personagens caminhando etc. Nesse aspecto, a estrutura do experimento é cíclica, simultânea e repetitiva. Isso também faz com que haja algumas possibilidades de sequenciamento das cenas, a depender do grupo que você esteja. 

 

Foto: Edson Maraz

 

7.

Os Gestos de Mata ou Quem respira pelos atores?

Há uma cena no experimento, que diferente das demais, está mais próxima da dança e da performance. Uma das mais bonitas e sensíveis. Nela, sentados em cadeiras de frente para a mata, ouvimos a gravação da voz de uma atriz que lê um texto sobre ancestralidade, sabedoria feminina e segredos da mata enquanto os intérpretes dançam entre as árvores segurando galhos com folhas verdes. A atuação se afasta da caracterização esdrúxula e estranhada. Há aqui algumas mudanças sutis mas significativas: apesar de todos continuarem vestidos e caracterizados, há um certo nível de desnudamento, pelo menos na atuação. Fica a impressão de que aqui entraram em cena os intérpretes e não seus personagens. A cena é um contraponto ao restante do experimento pela sua forma, ao mesmo tempo em que o texto e a ação reafirmam o discurso sobre cuidado e criação de um outro olhar para o Solar Ferreiro Torto, e principalmente para a natureza e para a História. A euforia das outras cenas abre espaço para um ritmo mais lento e contemplativo. Aqui a natureza parece ser convidada para ser mais que cenário, os corpos dos intérpretes dançando na mata transformando-a na própria protagonista. 

 

8. 

O experimento termina numa grande roda onde todos os participantes do Laboratório dizem uma frase sobre o processo de criação, integrando-o de certa maneira à apresentação final. Um dos participantes fala sobre a visita à Comunidade Quilombola de Capoeiras e a importância dela na escolha de criar um experimento alegre. A impressão que fica é que esse contato com a Comunidade acabou influenciando também em outras especificidades de "Memórias tortas de um lugar invocado": ano passado o Laboratório da Cena já tinha acontecido em um lugar com muita natureza, a Cidade da Criança, mas há entre o experimento de 2023 e o de 2024 uma mudança muito grande em relação à lida com a natureza em cena. Enquanto no ano passado ela aparecia apenas como cenário ou ponto de partida, aqui ela ocupa um lugar de centralidade narrativa, onde tudo começa e termina. Também é possível fazer uma aproximação entre a Comunidade e a presença de alguns elementos de matriz africana na obra, como em uma das cenas em que há um preto velho e um erê (o experimento do ano passado se voltava sobre o brincar e a infância) que faz o público prometer que irá cuidar melhor do meio ambiente. E de maneira mais subjetiva, a influência do quilombo também pode ser lida na repetição, simultaneidade e circularidade do experimento. As diferentes possibilidades de ordenação das cenas a depender do grupo que você esteja fazem com que a separação entre começo e fim sejam um pouco subjetivos, o que só me traz à memória a frase de Nêgo Bispo, que ao falar sobre a cosmovisão quilombola afirma: “Nós somos o começo, o meio e o começo”¹. 


*“Começo, meio e fim”, entrevista com Nêgo Bispo disponível em: https://revistarevestres.com.br/entrevista/comeco-meio-e-comeco/

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28/02/2024 - Miguel Cairo

Ler sobre esse último LAB (ação dos Clowns que tenho muito carinho) e suas peculiaridades é se deliciar e acalmar um pouco o desejo de não ter podido estar. Já tinha vibrado com a escolha de outro município e nesse local histórico que sempre pode trazer diálogos e a curiosidade aumenta mais com as fotos e os detalhes. Quando Quemuel fala da rainha já me vem logo a lembrança das Rainhas de maracatu daqui do Ceará que mesmo com a lógica monárquica e colonial era uma maneira dos nossos ancestrais de expressar e vivenciar as suas belezas na avenida. Misturar o que era conceito de glamour daquele tempo com a realeza de corpos negros a brincar e cantar suas loas e coroas. Então a descrição da Rainha Negra surgir na janela onde geral precisa olhar pra cima para contemplar traz logo uma imagem de o que está além, acima do que estava sendo mostrado. Um acento e um aceno.