Por Diogo Spinelli
08/03/2024
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Aos Cães de Teatro e a todes aquelus que porventura vierem a ler esse texto: aviso de antemão que essa é menos uma crítica a Cães, o espetáculo – ainda que em determinado momento eu teça comentários sobre a obra – e mais uma reflexão sobre a cena teatral natalense atual e sobre como assistir a esse trabalho renova, mesmo que momentânea e utopicamente, a esperança de que ainda seja possível vislumbrar um futuro para novas gerações de artistas e fazedores de teatro em nossa cidade.
Em 2024 o Farofa Crítica completará 08 anos de existência. Neste período de quase uma década – que praticamente coincide com o período também da minha vinda para Natal e por consequência, do meu acompanhamento presencial da cena teatral local – é possível identificar uma série de mudanças nos modos como o teatro (e, sobretudo, o teatro de grupo) vem sendo feito e pensado na capital potiguar.
É verdade que nesses 08 anos – com uma pandemia de praticamente 02 anos no meio – foi possível acompanhar o surgimento de novos coletivos, alguns dos quais ainda mantém suas atividades de forma mais ou menos regular até os dias de hoje, e de outros tantos que brevemente se desfizeram. Mas, olhando de maneira global, é possível presenciar um desmonte. Processo esse que permanece ocorrendo cotidianamente, apesar da falsa esperança de que os atuais governos estadual e federal poderiam trazer alguma renovação para a área da cultura – da gestão municipal atual, nem essa esperança havia – que fosse suficiente para revitalizar uma cena que míngua, mas que permanece teimando em existir. Um breve olhar para os grupos mais longevos da cidade ainda em atividade demonstra um esvaziamento geral de seus integrantes, impulsionado em parte pela precariedade das condições de sobrevivência, e em parte pelo aumento de demanda de atores da região pela indústria audiovisual, o que acaba por desfalcar os coletivos, que passaram a operar pela lógica da substituição, do stand-in e da montagem de elencos específicos para cada montagem, em detrimento de uma lógica de continuidade característica do teatro de grupo.
Esse desmonte perpassa não apenas os grupos, como também espaços de apresentação e sedes de coletivos, sendo o fechamento d’A.Bo.Ca – Espaço de Teatros, na Ribeira, e do Barracão Clowns, em Nova Descoberta, as maiores perdas nesse sentido. Do ponto de vista dos teatros públicos da cidade, o Teatro Municipal Sandoval Wanderley permaneceu fechado e entregue às traças durante todo esse período, ainda que aqui e acolá surjam boatos de sua reabertura (ou de sua venda), mas sem que tenha havido de fato nenhuma grande movimentação a esse respeito. Nos últimos tempos tem surgido um ou outro conteúdo nas redes sociais ligados à uma possível reabertura próxima, mas não há nenhuma notícia ou data oficial que garantam que isso realmente deva acontecer em breve.
O Teatro de Cultura Popular Chico Daniel – TCP, passou por breves períodos de reabertura, mas atualmente encontra-se mais uma vez com as portas fechadas. Por sua vez, a reinauguração do Teatro Alberto Maranhão – TAM trouxe um impacto muito menor à classe teatral do que, pelo menos do ponto de vista pessoal, eu vislumbrara que ela traria: com a maior parte de suas pautas sendo ocupadas por eventos de escolas de dança particulares da cidade e por projetos de teatro-escola de procedência duvidosa, a reabertura do TAM não fez com que Natal voltasse (ou começasse?) a figurar na rota de circulação de importantes produções contemporâneas do teatro nacional, recebendo, quando muito, a presença de algumas produções musicais e shows de comédia stand-up.
Quando o TAM é ocupado pelos artistas e coletivos locais, são poucas e localizadas as datas em que isso ocorre. Exemplo disso são as duas únicas estreias [!] de espetáculos de grupos da cidade ocorridas durante todo o ano de 2023 das quais consigo me recordar: a versão presencial de No coração da lua, do Grupo Estação, e a inédita Fábulas de nossas fúrias, do Atores à deriva. Infelizmente, por incompatibilidade de agenda, não pude estar presente nas poucas vezes (dois dias cada, talvez?) em que ambas as obras foram apresentadas no TAM – o que acaba por revelar outra faceta mais geral do fazer teatral natalense na atualidade: com os poucos espaços de apresentação disponíveis, aluguéis de pauta caros e pouco ou nenhum incentivo por parte do poder público nos três níveis, são raros os trabalhos que conseguem apresentar-se de maneira mais independente, restringindo-se as apresentações (mesmo de estreias) a poucas oportunidades.
Se a realidade da realização de temporadas sempre foi uma dificuldade presente na cena natalense, hoje em dia esse fator aparece como de ainda mais complexa execução. A inexistência de festivais de teatro adulto – como o saudoso O mundo inteiro é um palco ou o Agosto de Teatro, do qual só ouvi falar mas nunca presenciei –, bem como a realização pontual de poucas edições de eventos que agregam uma programação cultural de múltiplas linguagens, como o Circuito Ribeira, também diminuem a chance da parca produção natalense encontrar novas oportunidades locais de troca com o público da cidade, e dos artistas e do público natalenses terem acesso ao que está sendo produzido para além da capital. Mesmo quando pensamos na própria produção teatral dos grupos potiguares das cidades interioranas, essa escassez de oportunidades na capital faz com que haja pouco conhecimento do que se produz no restante no estado.
Isso se reflete, por sua vez, na própria escrita crítica sobre a cena local. Apesar do Farofa Crítica ser mantido, por Heloisa Sousa e eu, de forma independente e ininterrupta desde sua fundação em 2016, faz mais de um ano desde a última vez que publiquei um texto sobre uma obra natalense, já que não pude acompanhar as poucas estreias ocorridas no ano passado.
E é por esse motivo que, em meio a esse contexto de retomada lenta do setor pós-pandemia e pós-Bolsonaro, com os coletivos de teatro de grupo fragilizados e uma cena desaquecida, que é louvável ver o surgimento de um novo coletivo, formado em sua maioria por jovens entre os 18 e 24 anos, profundamente engajados em seu projeto inaugural, a ponto de conseguirem fazer lotar as duas apresentações bancadas com recursos próprios para sua estreia na Casa da Ribeira nos dias 03 e 04 de março deste ano. E é por esse motivo também que é importante deixar esse feito registrado aqui na memória efêmera que é o Farofa Crítica.
A primeira vez que ouvi falar nos Cães – eles ainda não tinham esse nome – foi mais ou menos há seis meses. Fui abordado após uma apresentação de Ubu: o que é bom tem que continuar! por um pequeno grupo se jovens entusiasmados que disseram estar montando uma peça e que em breve a estreariam. De lá pra cá, encontrar com os integrantes do Cães em apresentações teatrais e eventos culturais da cidade foi uma constância, e pude acompanhar também um ensaio aberto que os mesmos fizeram em dezembro do ano passado. Essa constância nos eventos teatrais da cidade, e uma aproximação com outros fazedores da cena local de diversas especialidades fizeram com que, apesar de novatos na área, em pouco tempo os Cães se fizessem ser conhecidos no meio.
Apesar dessas aproximações, importante salientar que o grupo é formado por ex-alunos do Colégio CDF-ZN, tendo também entre seus integrantes alunos da graduação em teatro da UFRN, não estando o coletivo vinculado a nenhum profissional mais experiente ou que esteja a mais tempo na cena, como comumente tende a ocorrer nos trabalhos iniciais de um novo coletivo - mesmo com a presença de Cristiano Micussi (ex-professor de alguns dos integrantes do grupo) no elenco, o mesmo não ocupa esse lugar de centralidade no processo criativo do coletivo. A obra inaugural dos Cães tem a direção assinada por Weyne Nascimento e Johnny Kleyson – idealizador do projeto, sendo responsável também pela dramaturgia do espetáculo, além de integrar seu elenco. Se por um lado essa jovem codireção deixa transparecer algumas fragilidades que poderão ser sanadas com a experiência e com a maturidade (artística e de vida) de todos os integrantes do coletivo,e conforme [e se] o espetáculo for apresentado mais vezes – como, por exemplo, os longos intervalos de transição de cena em blackout que fazem o público desconectar-se da ação –, por outro, ela revela o desejo dos Cães em encontrar uma linguagem e identidade próprias.
Há também de se destacar um grande fator aglutinador de seus fundadores, que pôde ser visto concretamente na reunião da numerosa equipe no palco da Casa da Ribeira no final da apresentação do dia 04 de março: para além do elenco, composto por dez atores e atrizes, os Cães cercaram-se de uma porção de outros artistas tão jovens quanto eles para cuidar dos demais aspectos da cena, do design à fotografia, da iluminação ao figurino. Ao ver a obra e sua equipe, o que transparece é que todes envolvides tratam o projeto com igual medida de afeto e seriedade, carinho e atenção, oferecendo o melhor dentro de seus limites para o êxito desta empreitada de estreia.
Adaptado de Cães de aluguel de Quentin Tarantino, Cães, o espetáculo deixa transparecer sua filiação à obra original audiovisual, sobretudo no que tange sua construção dramatúrgica e na escolha do registro de interpretação adotado pela encenação. Com forte predominância de diálogos – que fazem com a obra mantenha-se no campo do dramático – e de um registro interpretativo próximo ao naturalismo, a obra ganha teatralidade nos poucos momentos em que essa linguagem é atravessada por elementos de estranhamento, como aquele proporcionado pela figura da Louca do Centro, que estabelece uma relação direta com o público ou, de maneira ainda mais evidente, na cena da dança/tortura, quase ao final da encenação. A figura de Billy Doidão, ao ficar alheia à ação, servindo mais como narrador, também adiciona uma camada de humor, ironia e de comentário sobre o que é visto, sendo outro recurso que poderia ser aprofundado para trazer à cena de modo mais enfático o ponto de vista da encenação acerca da situação e dos temas que permeiam o trabalho.
Independentemente dos percursos de criação e dos resultados cênicos alcançados nesta primeira obra, talvez o principal questionamento que fique ao assistir Cães, o espetáculo – e que me lembro de ter feito em outras críticas de obras iniciais de coletivos, como a de Julieta mais Romeu, do Grupo Asavessa – seja aquele relativo ao discurso que está sendo operado na cena. Para além da experimentação dos aspectos técnicos da linguagem teatral, que histórias os Cães querem contar, de que maneira querem contá-las, para quem e por quê? Por que esse grupo de indivíduos, reunidos nesta coletividade, acham pertinente e importante trazer à cena o universo de Cães de aluguel hoje, em Natal? Talvez essas questões não sejam respondidas necessariamente acerca deste projeto, mas em obras futuras dos Cães. De toda forma, fica a provocação e o desejo de que, uma vez reunida a matilha, esse grupo tão diverso e tão potente possa bater um pouco a cabeça para tentar respondê-las em seus caminhos vindouros.
Ao sentir a energia contagiante emanada pela equipe reunida no pós-espetáculo, confesso que internamente houve uma espécie de renovação de pacto e de fé nessa atividade que, apesar de todos os pesares, é aquela na qual nos entendemos no mundo e com a qual decidimos operar profissional, artística e politicamente na sociedade. E é por isso que cada vez mais penso que toda estreia – e ainda mais quando é o nascimento de um novo grupo, e de novos artistas, e mais ainda, quando se dá em solo potiguar – deve ser celebrada. Vida longa aos Cães de Teatro.
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Ficha Técnica:
Direção: Weyne Nascimento e Johnny Kleyson
Adaptação: Johnny Kleyson
Elenco: Ennay, Kyara Leão, Elias Junior, Johnny Kleyson, Léo Leo, Cristiano Micussi, Iza Cavalcante, Uriel Diogo, Isabela Tavares, JC Junior
Maquiagem: Livia Alcantra
Fotografia: Maya Torres
Figurino: Juci Ribeiro
Iluminação: Jesulei Dias
Sonoplastia: Felipe Costa
Filmagem: Felipe Rocha
Designer/ID Visual: Malu Fernandes, Maya Torres
Produção: Weyne Nascimento e Johnny Kleyson
Fotos: Maya Torres
Viva! Bonito de ler e sentir o entusiasmo que uma dupla estreia permite. Vida longa aos Cães!