Por Quemuel Costa
20/03/2024
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Julieta mais Romeu (2019/2023) é o espetáculo de estreia do Grupo Asavessa e que surgiu de um experimento intitulado Relabucho (2015), criado dentro do Laboratório da Cena de Parnamirim e realizado pelo Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare em parceria com a Fundação Parnamirim de Cultura. Abro o texto com essa informação porque ela é fundamental para entender a relação do Asavessa com o Clowns de Shakespeare (que vai além da direção assinada por Paula Queiroz) e a consequente aproximação entre a estética dos dois grupos. O espetáculo estreou originalmente em 2019, teve a circulação interrompida pelo isolamento social da pandemia do Covid-19 e reestreou em 2023. Assisti ao espetáculo pela terceira vez no Tecesol (RN) em 1° de março deste ano, uma semana antes da atual temporada do espetáculo no Sesc Tijuca (RJ).
Em Julieta mais Romeu há uma estética muito semelhante à que levou o Clowns de Shakespeare a circular nacionalmente, principalmente nos trabalhos Muito barulho por quase nada (2003/2014) e Sua Incelença Ricardo III (2010). Essa semelhança se deve principalmente a utilização da mesma estratégia que o Clowns de Shakespeare utilizou em vários de seus trabalhos ao lidar com as dramaturgias clássicas do dramaturgo inglês William Shakespeare: a regionalização dessas histórias para o sertão nordestino somado ao humor e a presença da música como condução narrativa. Além do tipo de atuação que os três espetáculos compartilham, na qual se carrega um nível de estranhamento (palavra utilizada pelo próprio Clowns em seus cursos de atuação).
Há ainda uma forte relação com o teatro de rua e a cultura popular, que demanda atuações muito dilatadas e exageradas pela quantidade de interferências sonoras e visuais que precisam se sobrepor. Essa forma de encenação/atuação coloca (ou pelo menos aproxima) o Asavessa na mesma linhagem de grupos potiguares com projeção nacional, como o Alegria Alegria, Cia. Pão Doce, Estação de Teatro, Casa de Zoé e o próprio Clowns de Shakespeare.
Talvez pela história de Romeu e Julieta ser extremamente conhecida, mas intuo que também por, além de diretora, Paula Queiroz ser preparadora de elenco, a maior aposta do espetáculo está na atuação e no jogo estabelecido pelos atores. Sendo principalmente este último o condutor da história, sobrepondo-se inclusive a dramaturgia. Enquanto os acontecimentos são muito simples e encadeados de maneira cronológica, a forma como eles vão sendo mostrados vai se complexificando com os movimentos de cena e a relação entre os atores, além da música tocada ao vivo. Na versão do Asavessa, a tragédia de Shakespeare torna-se uma comédia com muitas referências ao imaginário nordestino, interiorano e regionalista, onde o foco está na forma que o grupo se apropria da dramaturgia e tira gargalhadas do público com as escolhas estéticas para cada cena, exemplo disso é o momento em que a rivalidade entre os Montéquio e os Capuletos é mostrada através de uma batalha entre repentistas. É possível perceber na aposta pelo humor uma certa aproximação com alguns dos princípios da técnica de clown, entre eles a resolução de algumas cenas, nas quais as ações tomam um tempo maior do que normalmente tomariam porque o palhaço carrega certa inocência, bobeira e malandragem e se alonga até nas mais simples jornadas. Nesse sentido, é principalmente nas atuações de Caju Dantas e Rubinho Rodrigues que o modo de atuação a qual o grupo escolhe se vincular encontra seu desbunde.
Ainda sobre a atuação, chama muito a atenção que apenas a atuação do casal protagonista não opere nessa chave do estranhamento. Em vez de serem estranhos e carregarem certa radicalidade na teatralidade como os demais personagens, Julieta e Romeu são bonitos e fofos. A atuação de José de Medeiros e Salésia Paulino é inclusive atravessada por certo naturalismo, chegando ao ápice na clássica cena em que o casal morre e a peça ganha uma carga dramática bastante sólida. Se por um lado, isso faz com que o casal tenha uma diferenciação dos inúmeros personagens coadjuvantes, por outro faz com que a presença de ambos, em alguns momentos, tenha menos energia e seja menos interessante que as figuras caricatas e esquisitas de personagens como o Frei, o primo bêbado de Romeu e os pais de Julieta. Que outras camadas de leitura uma atuação estranhada e clownesca poderia trazer para os personagens de Julieta e Romeu?
Ao escrever sobre o espetáculo em 2019, Diogo Spinelli¹ fez as seguintes considerações:
"Contudo, talvez ainda seja necessário aos integrantes do grupo se deterem com mais atenção às motivações que os fazem montar este espetáculo nos dias de hoje: para além de contar essa história, quais questões querem ser debatidas pelo coletivo ao levar às praças o enredo de Romeu e Julieta? Nesse sentido, a camada dos narradores/músicos parece ainda poder ser ampliada ou melhor aprofundada, a fim de que o ponto de vista e a intenção do grupo fiquem mais claros na montagem". (Spinelli, 2019, grifos meus).
Passados quatro anos desde a estreia de Julieta mais Romeu, as questões elencadas por Diogo ainda ressoam. Mas, elenco possibilidades de leituras políticas a partir de duas escolhas na forma do espetáculo: na versão do Asavessa, a peça é narrada pelos músicos que tocam na festa que os Capuleto e os Montéquios organizam, ou seja, estamos sabendo da história pelo olhar do proletariado. Fato que é anunciado logo de início, mas que ao longo da obra não traz tantos deslocamentos nem consequências quanto poderia. Além disso, a protagonista Julieta é interpretada pela única mulher negra no elenco, Salésia Paulino, o que traz certo protagonismo negro à obra, ainda que isso não influencie na dramaturgia nem traga maiores efeitos além do próprio protagonismo. No título do espetáculo do grupo, o nome da personagem interpretada por ela vem antes do de Romeu, invertendo o título clássico: Romeu e Julieta aqui torna-se Julieta mais Romeu. Tudo isso pode ser lido como demonstração do grupo estar atento aos debates sobre raça, gênero e representatividade na cena, por mais que essa última não vá salvar ninguém² e que essas questões só apareçam no espetáculo com timidez.
1: Sobre gerações, tradições e famílias por Diogo Spinelli, disponível em: https://www.farofacritica.com.br/criticas/conteudo/120/sobre-gerac%C3%B5es-tradic%C3%B5es-e-familias
2: A ‘representação-representatividade’ não irá nos salvar – Parte I: O que (não) conseguem as obras audiovisuais por Mariana Queen Nwabasili, disponível em: https://indeterminacoes.com/textos/mariana-queen
Fotos de Tiago Lima.