Por Diogo Spinelli
10/04/2024
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Nos dias 05 e 06 de abril de 2024 o Teatro Alberto Maranhão recebeu as apresentações de estreia de Clenyldes e Clenôrys ou A Irresoluta história de Paraíso, a maior pequena cidade do mundo, terceiro trabalho da produtora Casa de Zoé. Com dramaturgia e direção assinadas por César Ferrario, a produção conta em sua ficha técnica com uma vasta equipe de renomados profissionais tanto das artes da cena quanto da música potiguar.
Se em Sinapse Darwin, obra anterior da produtora, o texto estava ausente, estando a encenação calcada principalmente nos efeitos visuais e nas explorações sonoras em quadros que iam se apresentando um após o outro, em Clenyldes e Clenôrys a dramaturgia textual retorna ao foco, ocupando não necessariamente a centralidade da cena, uma vez que os demais elementos que a compõem continuam presentes de forma bastante superlativa, mas somando-se a eles, contribuindo para a criação de uma ambiência hiperbólica, e por vezes, excessiva.
Há um rebuscamento e um academicismo no tratamento dramatúrgico que fazem com que o acesso ao universo ficcional da obra seja feito com esforço e certo desconforto, sobretudo sonoro. Isso se dá porque, além do exercício intelectual de decifrar os significados de numerosas palavras inusuais proferidas em sequência – e que narram, na realidade, eventos bastante simples – acrescenta-se uma disputa com uma composição sonora e musical praticamente ininterrupta e complexa, e que por vezes parece sobrepor-se à fala.
Essa abundância e variedade de estímulos se fazem presentes também nos aspectos visuais do trabalho, abrangendo seus figurinos, adereços, cenografia e iluminação. Nesse sentido, podemos acompanhar uma continuidade da pesquisa anteriormente vista em Sinapse Darwin, estando ambos os trabalhos permeados por visualidades que lançam mão de múltiplos efeitos cênicos, de forma constante.
Desse modo, as produções da Casa de Zoé vêm se caracterizando como aquelas que mais exploram os artifícios da maquinaria teatral atualmente em Natal. No caso de Clenyldes e Clenôrys, nem sempre essa pluralidade de recursos visuais e de usos diversificados das chamadas tecnologias da cena apontam para o estabelecimento de uma estética específica para a obra, fazendo com que a encenação se caracterize pelo uso de elementos dissonantes e que por vezes contrastam entre si. Nessa profusão de elementos, em alguns momentos, a maquinaria ameaça inclusive roubar o foco da ação, tornando os mecanismos protagonistas, e aqueles para os quais o olhar da plateia se direciona.
O principal elemento visual/maquinário do espetáculo é composto por uma estrutura retangular suspensa que ocupa a centralidade do espaço cênico. Esse elemento, que vagamente remete às molduras dos quadros que compunham o fundo da cena de Meu Seridó, primeira obra da Casa de Zoé, por vezes é utilizado como teatro de sombras, por vezes como telão de fundo. É por meio dele, deste teatro-janela-televisão, que temos um pouco de acesso ao que acontece no mundo externo, uma vez que somos dados a conhecer – ou a imaginar – a cidade de Paraíso através da interação de poucas figuras, e grande parte da ação da obra se passa no ambiente interno de uma casa: a das gêmeas que dão título à obra.
A primeira parte do trabalho se estabelece por meio da utilização de um recurso de repetição. Morte e nascimentos se alternam e se sobrepõem, num tempo cíclico que se repete e se modifica ligeiramente a cada variação. É através dessa repetição que acompanhamos as gêmeas nascerem e crescerem, sem nunca ao certo sabermos em que momento histórico de Paraíso estamos em cada cena.
Acrescido do leque de personagens que somos dados a conhecer, da composição cênica e imagética dessas figuras e da linguagem de intepretação adotados, que flertam com o gênero melodramático, o uso do recurso da repetição com variação me fez recordar da obra Melodrama, da carioca Cia. dos Atores. Somente tempos depois me dei conta das coincidências que vinculavam ambos os trabalhos. O texto de Melodrama possui autoria de Filipe Miguez, autor de Meu Seridó; e sua encenação é de Enrique Diaz, que, pelo que pude acompanhar pelas redes sociais, visitou o elenco de Clenyldes e Clenôrys, pouco tempo antes da estreia da obra. Ainda que aleatórias, essas duas informações reforçaram ainda mais minha sensação de aproximação entre ambos os trabalhos.
A repetição, adotada principalmente na primeira parte da obra, vai gradativamente desaparecendo no desenrolar do espetáculo, sendo retomada de forma mais localizada em momentos como o das múltiplas cenas em sequência entre a empregada e o gato, no qual os dois repetem um diálogo com pequenas alterações que pressupõe contextos diversos, e à sua maneira, na cena em que acompanhamos vários trechos de programas de TV.
Apesar da comunicação visual do espetáculo, e de seu próprio título, reforçarem a ideia de um protagonismo e de um dualismo das gêmeas Clenyldes e Clenôrys, chama a atenção o fato de ambas as personagens aparecerem pouco na obra, estando os acontecimentos principais ocorrendo ao redor das mesmas, sem que as irmãs estejam necessariamente implicadas efetivamente nestas ações.
A essa passividade, que lhes confere uma posição de observadoras, soma-se o estranhamento de não haver nenhum momento na qual as personagens exploram suas dualidades. São duas gêmeas, mas que operam integralmente como uma personagem só, por vezes em uníssono, sem apresentarem conflitos ou diferenças, quase destituídas de personalidades que as definam enquanto indivíduos. Curiosamente, ambas são apresentadas com caracterizações e com uma linguagem interpretativa que de modo geral as aproxima de objetos: bonecas, manequins; como se dentro desse grande mecanismo de traquitanas e autômatos, verdade e simulacro, as gêmeas fossem elas mesmas parte integrante desta engrenagem.
Mesmo com essa ausência que contraria certa expectativa inicial, é em um dos poucos momentos protagonizados pelas duas, no qual ambas vestem figurinos com apliques florais e a luz do telão as recorta em tons de verde, que o espetáculo instaura outra atmosfera, ao permitir-se um respiro tanto de movimentos quanto de sons. Estáticas nessa imagem, que me fez recordar do quadro Duas Fridas de Frida Kahlo, as personagens reforçam seu aspecto testemunhal, em falas nas quais parecem observar os acontecimentos de seu povoado de um ponto de vista menos terreno, e sim, astral.
Sabendo de antemão do apreço de longa data de César pela imagem do Angelus Novus, de Paul Klee, a partir da análise de Walter Benjamin em O Anjo da História, essa cena me pareceu concretizar a seu modo essa ideia, como se as gêmeas, tal qual o anjo de Klee/Benjamin, também almejassem “[...] deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.
Voltando à narrativa, apesar de filhas de homens diferentes, que simbolizam duas famílias políticas rivais de Paraíso – herdeiras, portanto, quer queiram quer não, desta disputa política – esse conflito nunca se estabelece entre Clenyldes e Clenôrys. Ao contrário, a encenação por vezes parece reforçar a ideia de que os políticos são todos iguais, como na cena da campanha eleitoral, na qual o discurso que se estabelece é o de que o povo, massa de manobra, escolhendo ou um ou outro, troca seis por meia dúzia. Dado o contexto político e a polaridade em que vivemos atualmente não só no Brasil, mas globalmente, a possibilidade desta leitura enfraquece e esvazia o viés político que a obra poderia ter, a partir da premissa dual que traz em si mesma.
Tanto é assim, que o conflito da obra – a nível geral e a nível político – se estabelece com o surgimento na segunda metade do espetáculo de um coronel, transformado em general, e que, sem muitas explicações, militariza a vila e toma o poder. Sendo a única figura ausente da primeira parte da obra, seu surgimento desconsidera o conflito entre os progenitores e as famílias das gêmeas, passando por cima do imaginário que havia porventura sido construído sobre Paraíso. Mesmo que seja impossível não associar a figura ao período da ditadura civil-militar brasileira, ou das recentes aproximações entre a extrema-direita e os militares, essa associação resulta demasiadamente direta, e deslocada do que a obra apresentara até então.
Diferentemente do que ocorre com relação à expectativa criada pela figuração dos nomes das gêmeas no título da obra, o mesmo não pode ser dito com relação ao seu subtítulo: a irresoluta história de Paraíso. Essa promessa é cumprida à risca, uma vez que apresentado o personagem do general, e posta em cena uma aparente oposição entre as gêmeas e este, nada se conclui: nem a história da cidade, nem das gêmeas, nem do próprio general.
Há uma suspensão, mas sem que necessariamente se estabeleça um suspense: sem que tenhamos nos afeiçoado àquelas figuras, e sem que tenhamos de fato conseguido adentrar Paraíso, acabamos pouco envolvidos em suas faltas de conclusão. Acrescenta-se a isso o fato de, próximo ao final da obra, uma fala ser dirigida diretamente ao público clamando por “não tentar encontrar lógica” naquilo que foi visto por mais de uma hora. Esse esvaziamento dos sentidos soa menos como uma proposta apriorística, e mais como uma justificativa para essa e outras não-resoluções.
Entre suas incompletudes e seus excessos, Clenyldes e Clenôrys é sem dúvidas uma peça provocativa. Tanto o é, que sigo tentando encontrar lógica onde aparentemente não há, e não passei um dia sem pensar sobre seus enigmas desde que a assisti.
Foto do banner: Brunno Martins