Imagens que Caminham

Por Heloísa Sousa
30/04/2024

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

No mês de abril de 2024, encontro a imagem (em registro fotográfico) da intervenção urbana “Viúva Negra” criada pela multiartista potiguar Sun Sarara Shana. A imagem circulou pelas redes sociais da artista e nos trouxe não apenas um registro da ação como divulgação, mas fez parte de uma organização de materiais que tornaram acessível a ação artística em si, mesmo que não estivéssemos no mesmo espaço-tempo de sua realização. Nos posts de Instagram, foi possível acessar registros que apresentaram, com certa inteireza, a composição imagética da ação, assim como a descrição das intencionalidades da artista e ainda um vídeo que sintetizou alguns momentos da intervenção. 

A obra foi criada durante a Residência Artística "Estelionatárria de Imagens", realizada em dezembro de 2023 na Casa Vermelha. Segundo descrição, "Estelionatária de Imagens" é um projeto autônomo, idealizado por Marcelo Gandhi em colaboração com as artistas Sayonara Pinheiro, Pêdra Costa, @nnatannnatann, Franco Fonseca, Carolina Teixeira, Pachacarbo e Sun Sarara. 

Vendo as imagens, assistindo ao vídeo, lendo e stalkeando (vejam que interessante pensar o stalkear como parte possível, agora, de algum processo de observação das obras artísticas) as artistas envolvidas na residência, pensei algumas coisas.

A primeira é sobre o próprio conceito de performance. A radicalidade, indisciplina e abstração próprias da performance, por vezes, nos faz confundir as práticas, técnicas e linguagens; mas, principalmente nos faz confundir a ação em presença com a ação em mímese. Quando a pesquisadora Erika Fischer-Lichte (2011) tenta delinear uma possível estética do performativo, ela fala sobre a intenção do artista performador em agir (não simular) no momento presente e assim hiperpresentificar corpo, espaço e tempo; o que fricciona as dimensões de risco, vulnerabilidade, institucionalização e a própria fronteira entre arte e vida. A observação das obras em performance pode gerar, pelo método de análise da memória, uma percepção de vários signos acompanhada de suas tentativas de interpretação - na verdade, do ponto de vista do espectador, isso é praticamente inevitável. Mas, a experiência interpretativa é suspendida tanto pelo artista em seu processo de criação quanto durante a ação em si; como se o impacto da obra em relação ao corpo do artista, que a agencia naquele exato momento, e ao corpo do espectador que a observa sem as preliminares institucionalizadas da arte, não autorizasse um acesso instantâneo às nossas habilidades e vícios de interpretação.

Foto de @nnatannnatann

Observando e pensando (e me observando pensar) sobre a obra de Sun Sarara, algumas ambivalências e incertezas me tomam. A obra se materializa na composição de uma imagem sobre o corpo, ou de uma aparência corporal; o que parece, à primeira vista, uma composição de ordem escultórica ou pictórica, como se a artista pintasse algo na paisagem urbana com novas formas e cores. O que, por esse viés, poderia sugerir alguma passividade na composição e que a aproximaria mais da prática da instalação do que da performance, como um “corpo-lambe” que se posiciona na paisagem - tanto que, nesse tipo de obra artística, os registros fotográficos findam por se tornar praticamente uma obra em si e apresentar ao espectador uma síntese muito consistente e muito próximo da ação presencial. A obra quando sendo criada para produzir uma imagem, acaba por gestar uma imagem que condensa a obra em si, ao ponto de se tornarem equivalentes. Junto a isso, temos a nossa relação complicada com as imagens que nos fazem, frequentemente, sempre cair na lógica dos símbolos e representações. Daí, a minha dúvida sobre a natureza performativa dessa criação.

Entretanto, penso que a obra de Sun Sarara, faz algo além - assim como outras obras semelhantes à dela - mas que eu ainda não havia percebido. Quando penso sobre qual ação mobiliza a intervenção “Viúva Negra”, no sentido da materialidade da obra e da “técnica conceitual” da performance - e não dos seus significados, percebo que o criar uma imagem não é o seu único verbo. Em paralelo a esse criar, existe o ato de com-pôr ou com-posicionar a imagem que a desloca dos espaços institucionalizados da arte e a traz para o espaço urbano como sendo sua “galeria”. E, junto a isso, Sun desfila a obra. 

 

É sobre esse desfilar que eu gostaria de falar-pensar sobre.

O desfilar pressupõe o caminhar. A ação da caminhada é uma das ações primordiais do ser humano, pois em algum princípio, era a vivência nômade que organizava nossas relações interpessoais. E é também a vivência sedentária, adotada posteriormente, que reorganizou essas mesmas relações e tornou-se terreno para a afirmação de outros sistemas sociais, políticos, econômicos e culturais. Portanto, caminhar é uma ação estratégica que pressupõe atravessar uma paisagem e desacelerar os circuitos de produção e fruição. Junto disso, se a caminhada não tem um destino exato, ela é também contra-produtiva. Se observamos historicamente, o caminhar é uma ação simples, mas reincidente em muitas performances. E é justamente pela sua simplicidade que se carrega uma certa dubiedade e nos confunde em relação à ambivalência da referencialidade/autorreferencialidade (Bonfitto, 2013) na performance - está se caminhando para simbolizar alguma outra coisa fora da obra artística, como uma ação teatral (referencialidade) ou se está caminhando para enfrentar a ação em si, como uma ação performativa (autorrefencialidade)?

O que notei na intervenção de Sun é que existe a possibilidade de um vértice nisso. Uma ação que cruza os dois vetores ambivalentes que citei acima. Porque uma ação performativa apenas em torno do caminhar tenderia a uma verticalização dessa ação como fizeram os situacionistas, por exemplo. No caso dos vanguardistas citados, o corpo caminha. Mas, em “Viúva Negra”, a ação performativa criada e agenciada por Sun Sarara é um vértice, portanto, é a imagem que caminha.

No contexto em que vivemos de altíssima produção e reprodução de imagens em absoluta diversidade e velocidade, a experiência do “choque” ou “impacto” pelo encontro com a imagem acaba tendo pouca aderência. Por mais que haja a possibilidade de reação e engajamento corporal em relação às imagens, o fluxo de estranhamento da paisagem tem sido mais aceito de algum modo. O olhar do transeunte percorre o estranhamento e segue seu fluxo normal, podendo interpretar a imagem como loucura ou protesto (ou os dois), interpretações automatizadas e disseminadas.

Mas, quando a imagem caminha, talvez seu projeto seja menos pela imediata ressensibilização política através do conteúdo da imagem; e mais pela ressensibilização corporal através da experiência da contemplação. É nessa segunda situação que reside a performatividade das obras que caminham; tendo a interpretação dos signos e de sua politicidade como etapa posterior a partir da análise da memória. 

 

Contemplação: ato de concentrar longamente a vista. 

 

Entretanto, faço a ressalva de que nem tudo que caminha é imagem e nem toda imagem consegue caminhar. 

Faço esse percurso de pensamento porque defendo que seja importante, dentro da prática da análise crítica, compreender a ação performativa que está sendo acionada em uma obra (pois nem toda ação é performativa e a performatividade não depende da autoproclamação do artista, mas sim do efeito da estratégia artística operada), assim como, perceber o campo de sensações que esta ação elabora no próprio artista e nos espectadores (pois a ação pode até ser performativa, mas pode ser anacrônica a tal ponto que desarticula as sensações que pretendia elaborar). 

As imagens quando se apresentam no mundo buscam por uma historicização. Elas buscam não apenas excitar os sentidos e mobilizar os desejos, mas também buscam se posicionar nas narrativas coletivas ou individuais, elas buscam se organizar na cadeia da memória e da história. Elas buscam [e disputam] seu espaço. Elas buscam [e disputam] suas posições. E a relação com as imagens (criação e contemplação) baseiam nossas necessidades e capacidades imaginativas. Se nossos imaginários são cooptados pela publicidade e pelo moralismo, a arte é nossa possibilidade de rompimento com a cadeia compulsória e clichê para relembrar, exercitar e acionar outros olhares e outros mundos. Quando Sun Sarara caminha a imagem de sua Viúva Negra, ela, enquanto artista, rompe uma cadeia de organização e historicidade das imagens cotidianas e urbanas, antes da afirmação-protesto há a afirmação-arte que reorganiza todos os corpos presentes. Ou seja, o desfilar ao qual associei a intervenção da artista, está menos associado à apresentação de ideias pela caminhada (como fazem modelos em passarelas) e mais associado à ação de furar a fila [da ordem de apresentação das imagens do mundo]. Supondo que filar fosse a ação de “organizar em fila”. Ao des-filar a imagem, a artista desorganiza a fila estabelecida, irrompe o cotidiano em uma ação paradoxal entre “inter[ferir] [n]a paisagem” e “democratizar o imaginário”. 

 

Desfi[bri]lar: Fazer imagens caminhar para emitir cargas elétricas aos corpos envolvidos na criação-contemplação a fim de restabelecer os batimentos do coração [e talvez, parar].

 

É possível que muitas pessoas que observaram a intervenção pensem naquela ação como um absurdo na realidade. Mas, é a ação performativa de Sun que também olha para o mundo e o pensa como um absurdo na realidade. Isso porque toda imagem compõe, ao redor de si, um espaço de coesão. Se o espaço observado destoa da imagem apresentada (o que acontece, propositalmente, em quase toda intervenção urbana), temos uma experiência concreta, sensorial e material de invenção de mundos paralelos para reorganizar a contemplação vivida. Lembrando que, é de direito de qualquer transeunte ignorar a imagem, negar-se a invenção, esquecer a contemplação e seguir com seu corpo-mundo. Mas, aqueles que se permitem cair nessa fenda que a arte propõe, não retornam dela da mesma maneira. E aí, está a possibilidade de (re)composição subjetiva através da arte.

Print do vídeo "Viúva Negra": Sunsarara: Estelionatária de Imagens.

 

Dito isso, agora é possível pensar sobre a imagem em si.

A materialização da fusão imagética entre os dois objetos (aranha e mulher) é certeira, Sun transfere ao seu corpo uma habilidade nata de um bicho que consegue concretizar seu desejo: comer a cabeça do macho. O macho, a qual a obra faz referência, é menos uma individualidade e mais um discurso (embora a separação entre individualidades e discurso seja complicadíssima) e, portanto, é uma ação que busca incitar revolução, é um ataque às ideias (e suas articulações práticas). A complexidade política e a ética-estética desta imagem é tão bem elaborada e posicionada que Sun arrasta cabeças masculinas de manequins (e não estruturas penianas, por exemplo), além de carregar nas mãos, durante todo o percurso, uma lata de spray vermelha como armamento poético-discursivo. A imagem age com muita precisão e dialética.

Foto de @nnatannnatann

Gostaria de reiterar que, ao contrário do que se pensa comumente nas performances artivistas, a intervenção “Viúva Negra” não destrói o patriarcado (quem nos dera que as obras artísticas tivessem tal potência) porque a reparação das violências não é de ordem poética. Mas, a intervenção ataca em imagem, des-fila e abre fendas imaginárias do desejo, e isso… isso é muita coisa. Isso é ação, força e agenciamento em arte.

O mascaramento usado pela performadora completa a composição que transfigura o corpo no sentido da identidade e da animalidade. E dessa forma, finda por também ser um elemento de conexão entre essa intervenção e outras realizadas por mulheres artivistas como as Pussy Riot e as Guerrilla Girls, onde a ocultação da face e a zoomorfização são estratégias de proteção e amuletos para instauração de alguma distopia - e as distopias parecem se afastar da realidade, mas a encontram violentamente na outra ponta do percurso. Não é sobre nossos rostos - no sentido do apelo empático pela individualidade, mas é sobre agir e redesenhar as categorias políticas (entendendo o gênero como umas delas, inclusive) em nossos corpos.

A pesquisadora e performadora Bia Medeiros defende a possibilidade de substituirmos o termo “intervenção” ou “interferência” artística por “composição” artística como forma de evitar a associação da prática artística com algum tipo de agenciamento violento e que não considera a dimensão coletiva da experiência estética. Entretanto, se posicionarmos a obra “Viúva Negra” no escopo das ações do female rage (proposições estéticas feministas que centralizam a raiva como operação compositiva), penso que a intenção de Sun Sarara seja realmente a de inter(vir) e inter(ferir) enquanto compõe. Não é uma obra que pede licença, nem que ilumina a paisagem de uma das praias urbanas mais frequentadas no Rio Grande do Norte, ela desobedece a fila, assume seu risco ao rascunhar outra imagem-contorno para uma categoria política e encara a vulnerabilidade de um explosivo paradoxo entre um corpo que caminha tranquilo enquanto a imagem ataca.

A obra fere

A obra é uma imagem que caminha, des-fila, desfi[bri]la e que fere outras imagens.

Foto de @nnatannnatann

 

 

 

Referências:

Estética de lo Performativo, de Erika Fischer-Lichte (2011).

Entre o Ator e o Performer, de Matteo Bonfitto (2013).

 

Fotos de @nnatannnatann

 

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