Por Heloísa Sousa
24/06/2024
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
No dia 20 de junho de 2024, o Clube Frisson abriu suas portas para uma sessão do projeto Gambiarra, um cineclube itinerante da cidade de Natal (RN). Nesta noite em questão, o filme alemão “Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror” (1922) dirigido por Friedrich Wilhelm Murnau foi exibido com sonorização ao vivo feita pelo Grupo de Improvisação Livre (GIL) da UFRN.
Meu desejo de escrever este ensaio é menos uma vontade de elaborar uma crítica sobre o filme alemão (embora eu vá realizar alguns comentários sobre ele ao final) e mais de perceber aspectos fundamentais de teatralidade no acontecimento que se realizou, além de destacar questões em torno da experiência estética vivida naquela quinta-feira.
Talvez as obras artísticas existam menos como objetos e muito mais como acontecimentos, o que reitera o encontro com a arte como sendo sempre uma experiência cujas sensações se desenvolvem nas relações entre os elementos dispostos não apenas na obra em si, mas em torno dela. A sessão proposta pelo Gambiarra trazia um mistura de desconfiança com curiosidade, afinal de contas, quem sairia de casa ou do trabalho, numa quinta-feira à noite, num junho chuvoso, numa capital nordestina que se torna um transtorno diante da chuva, para ir até um galpão localizado na Rua Chile no bairro da Ribeira, que devia ser provavelmente o único lugar aberto daquele bairro naquela noite, com pouca iluminação, quase não podendo contar com o transporte público, para assistir a exibição de um filme expressionista alemão de 1922, de uma época em que o cinema ainda era mudo, enquanto alguns artistas improvisam ao vivo a trilha sonora em um local que, provavelmente, não teria nem estrutura nem uma acústica tão adequada? O nível de precariedade da experiência proposta é muito radical, mas equivalente a isso é também o nível de gambiarra e reinvenção com o qual artistas, articuladoras e articuladores culturais potiguares lidam cotidianamente nesta cidade e que nos torna capaz de criar experiências indizíveis, talvez até inimagináveis, e que nos compõe com maestria. Não nos interessa endossar nenhuma romantização dessa precariedade, mas também não podemos abandonar uma observação criteriosa, afetiva e efetiva com a qual a cena cultural underground da Grande Natal vem resistindo por tantas décadas e promovendo ações culturais e experiências artísticas de alta complexidade, mesmo que apoiada em um terreno mais instável e arenoso que as nossas dunas.
Sobre a cena underground
Tanto a cena underground quanto a cena marginalizada da Grande Natal são movimentos contra-hegemônicos e de resistência, que expressam materialmente uma necessidade comum de criar e fruir experiências artísticas que não são fomentadas pelos padrões comerciais, que não se aliam às proposições das elites e nem tem espaço dentro dos circuitos midiáticos, ou seja, é um movimento de invenção de uma realidade possível para interações estéticas que divergem de outras experiências que além de não serem acessíveis, não são sequer desejadas. Faço aqui uma separação entre a cena underground e a cena marginalizada da cidade, porque apesar de terem o mesmo radical de impulso contra-hegemônico, nem sempre o underground atinge certos níveis de massificação local. A Banda Grafith, por exemplo, apesar de constituir parte da cena marginalizada, já alcança um nível de adesão e massificação que a torna amplamente conhecida e consumida, transformando-se assim em parte constituinte da experiência de identidade natalense. O mesmo não acontece com muitos grupos de diversas linguagens artísticas que se apresentam e/ou são sediados no bairro da Ribeira, que mantém-se à margem e ainda tem sua formação comunitária nichada; muitas pessoas que residem na cidade não fazem a menor ideia da vida noturna atual daquele bairro. E aí que está outro aspecto fundamental da experiência cultural natalense, o acesso à cena underground se dá pela convivência. Para as pessoas recém-residentes na cidade que reclamam de não saber onde encontrar informações ou divulgações sobre a cena local; é preciso que essas pessoas percebam que essa cena não interessa à mídia hegemônica e que essas informações estão nas próprias pessoas, no convívio, na rua. Ou você vive Natal ou não há Natal para se viver.
*As relações entre a ação do poder público no setor cultural e as relações entre turismo e cultura na Grande Natal é uma outra questão a ser debatida; vou preferir aqui falar sobre a nossa capacidade de autogestão e redistribuição de poder.
Dito isso, é possível localizar o projeto Gambiarra Cineclube como mais um movimento recente dessa cena underground. Natal é marcada por contradições e situações peculiares em relação ao cinema: são cinemas de rua históricos que foram transformados em espaços religiosos (fato, por si só, profundamente simbólico) fazendo com que os únicos cinemas da cidade sejam empreendimentos de redes multinacionais que tornaram a ida ao cinema uma prática absurdamente inacessível, em termos financeiros, além de forçar a comunidade natalense a consumir apenas uma programação que se restringe a filmes midiáticos, hollywoodianos e globais. Em contrapartida, a produção cinematográfica potiguar tem se despontado vertiginosamente e se destacado tanto por sua qualidade artística quanto pela sua interação com o circuito nacional e internacional. Essas contradições compõem a subjetividade de cidadãos que residem na Grande Natal, principalmente, porque a experiência de fruição e a experiência de criação parecem seguir direções opostas. É nessa realidade, que as jovens articuladoras Ana Carol, Danilo Andrade, Lucas Delmas, Maria Sucar, Mariana Cabral e Marcone Soares promovem um projeto fortemente estético e político de um cineclubismo gratuito que oferta à cidade, de modo itinerante, outro circuito de cinema.
Sobre a sessão como acontecimento “teatral”
O filme foi exibido com uma estrutura simples de projeção. Na primeira fileira de cadeiras, três músicos e uma musicista do Grupo de Improvisação Livre da UFRN estavam posicionades com seus instrumentos para realização da sonorização ao vivo. O Clube Frisson recebeu naquela noite mais pessoas do que a quantidade de cadeiras era capaz de acolher, e ainda assim muitas dessas permaneceram assistindo a sessão completa por uma hora e meia e de pé. O bar funcionava normalmente, algumas pessoas fumavam durante a sessão, outras se acomodavam próximo ao portão de entrada ou na rua e o burburinho das suas conversas ainda eram audíveis para quem assistia o filme. Se essa forma de exibição com sobreposição de sensorialidades pode nos parecer estranha hoje, ela também carrega algo de histórico porque há muito tempo atrás tanto as exibições cinematográficas, quanto as apresentações teatrais, se configuravam assim. No teatro, por exemplo, foi só no século XVIII que se decidiu desligar as luzes da plateia para induzir a atenção do público para o que estava na cena. Gradativamente, fomos “educando” a experiência de contemplação para que espectadores e espectadoras tornassem sua presença quase imperceptível, a fim de dar destaque à obra artística em si. Mas, naquela exibição no Clube Frisson o público não apenas estava fortemente presente como constituiu, em si, parte da sessão e tornou materialmente expressivo o engajamento coletivo em torno daquela experiência estética. Nesse sentido, o que vivenciamos naquela quinta-feira foi uma manifestação concreta de como o acontecimento artístico coexiste com a realidade e se estabelece no engajamento coletivo e autogerido pelos corpos presentes, para além de normas e convenções pré-estabelecidas sobre “modos adequados” de apreciação.
Foto de Marcone Soares
A dissociação material entre os elementos de composição da experiência artística durante a exibição do filme me fez também perceber a noção de teatralidade de uma forma até mais evidente que muitas apresentações teatrais.
Quando os estudos teatrais do século XX começaram a se questionar sobre a especificidade da linguagem teatral, o termo teatralidade é posto em evidência. Ao observar, a partir da análise de Jean-Pierre Sarrazac (2021), como as experiências no teatro vinham se construindo, nota-se que “era como se o teatro colocasse em jogo três mundos: o mundo da realidade cotidiana, o mundo da artificialidade do palco com seus materiais cênicos e o mundo ficcional gerado a partir dali, e que cobrava certa cegueira do público em relação ao segundo mundo, para que o primeiro e o terceiro pudessem se relacionar narrativamente e afetivamente. Ou seja, a observação sobre aquilo que havia de teatral deveria nos induzir a invisibilizar esse teatral, simultaneamente. A dialética estava posta e as convenções teatrais iam jogando com essas necessidades” (Sousa, 2024). Mas, o que poderia acontecer se observássemos o próprio simulacro cênico e sua operação nas apresentações de maneira crítica?
Ao realizar a sonorização ao vivo de um filme criado dentro das possibilidades estéticas e técnicas do cinema mudo, a experiência proposta pelo Gambiarra em parceria com o GIL UFRN promoveu uma radical separação entre os elementos da composição artística, o que nos possibilita tanto uma observação diferenciada para essa teatralização quanto uma experiência sensorial artesanal que joga com os hábitos corporais já cristalizados diante de situações semelhantes. A imagem do filme estava separada, manualmente, do som do filme - hibridizando ainda a operação técnica reprodutiva (gravação do filme) com uma operação técnica criativa (músicos tocando) - junto disso, havia ainda a separação em relação à apresentação dos signos verbais. Na estrutura do cinema mudo, as falas das personagens ou narrações de momentos na história eram apresentados como cenas dissociadas da imagem em movimento e tornadas imagens em si, diferente do recurso simultâneo das legendas. Essa estrutura além de fragmentar a percepção, finda por apresentar um roteiro fundamentalmente mais preciso e que não poderia se perder em elucubrações extensas - o texto parece aproximar o essencial do informativo, mas sem perder a poeticidade da inserção de uma referência lógico-verbal na experiência artística. Em outras palavras, a sessão apresentada consistiu em um cinema com dissociação material entre imagem, som e texto, e que, justamente por isso, tornava evidente a teatralidade do acontecimento (encenadora alemã Susanne Kennedy, por exemplo, promove dissociações muito semelhantes no teatro para alcançar algum tipo de experiência cósmica nas suas apresentações). Quando nomeio de dissociação material pretendo dar ênfase à separação em torno da apresentação desses elementos; estamos conscientes da presença real dos músicos e da musicista no espaço realizando uma improvisação, estamos observando as imagens do filme e também vemos a interrupção dessa mesma imagem quando o texto nos aparece; como se som, imagem e texto fossem três vetores paralelos mas que vibram conjuntamente. Isso não significa dizer que não haja nenhuma associação nessa experiência artística, entretanto, ela se dá de modo mais manual tanto pelo público quanto pelos artistas responsáveis pela sonorização. O efeito dessa dissociação é a desnaturalização da nossa percepção, habituada a sentir o filme ou a peça teatral como uma unidade que já compõem todos os elementos sensoriais de modo tão integrado que nem somos mais tão capazes de percebê-los separadamente - a ponto de, em determinadas cenas de outros filmes, conseguirmos ouvir a trilha sonora ao mesmo tempo em que não mais a ouvimos (perde-se a consciência do ouvir) porque só percebemos a sensação integral da cena. Se devolvermos essa experiência de dissociação para a nossa realidade, podemos ser capazes de ver a realidade em si como uma composição.
Quando Sarrazac fala sobre a teatralidade, ele enfatiza a ideia de presentificar a representação, tornar visível a presença em si do teatro (ou do cinema) enquanto composição, ao mesmo tempo que nos convoca a sermos partes dessa “máquina sensorial” com as nossas próprias presenças compartilhando tempo e espaço com a obra. Nesse sentido, a sonorização ao vivo de um filme “mudo” em condições de exibição como as que se deram no Clube Frisson se transforma em um tipo de experiência teatral que põe em evidência algo para além do filme, e que traz luz para um engajamento coletivo na experiência estética.
A sonorização ao vivo e improvisada vem sendo parte da atuação prática do Grupo de Improvisação Livre da UFRN desde 2019, e que já tocou na exibição de filmes como “Viagem à Lua” de Georges Meliés, “O Gabinete do Dr. Caligari” de Robert Weine, “O Oco do Tempo” de Antonio Fargoni, “O Garoto” de Charles Chaplin, entre outras produções cinematográficas. As dinâmicas de relação entre os grupos artísticos da UFRN e a realidade artística da Grande Natal são, frequentemente, motivo de discussão pelo distanciamento que a instituição sustenta em relação à própria comunidade a que serve. Considerando que as outras improvisações realizadas pelo grupo se deram no Auditório Onofre Lopes dentro da Escola de Música da UFRN, intuo que a saída desse espaço para participar de uma ação no bairro da Ribeira, promovido por articuladoras culturais fortemente integrades à realidade artística da cidade possa ter concretizado uma experiência ainda mais coerente em termos estéticos e políticos. Tanto que foi esta sessão que me fez conhecer o trabalho primoroso do grupo e despertar o desejo de vê-los novamente em articulação com outros artistas da cidade; e desconfio não ser a única a ter essa percepção.
Foto de Marcone Soares
Sobre o filme “Nosferatu”
O filme alemão, dirigido por Murnau e estreado em 1922, tornou-se um clássico do cinema mudo e uma das obras mais importantes do expressionismo alemão. Uma produção artística do início do século XX que surpreende por uma composição rebuscada com a técnica cinematográfica - mesmo diante do surgimento muito recente do cinema que nem havia nascido como prática artística.
Na narrativa, apresentada em cinco atos e inspirada no romance “Drácula” (1897) de Bram Stoker, acompanhamos Thomas Hutter (Gustav von Wangenheim), um agente imobiliário que viaja até a Transilvânia para vender um imóvel ao Conde Orlock (Max Schreck), que ele descobre ser um vampiro. Orlock se torna obcecado por Ellen Hutter (Greta Schröder), ao ver um retrato que seu marido Thomas levava consigo e decide ir atrás dela de navio, o que o faz espalhar a peste por onde passa.
Nesse período, o cinema alemão aderiu ao movimento expressionista que se manifestava em diferentes linguagens artísticas na Europa. Após atravessar a Primeira Guerra Mundial e desconfiar da filosofia positivista, alguns artistas e pensadores começaram a evocar uma relação mais intrínseca com a interioridade das matérias, cavando sentimentos profundos e ambíguos como o próprio horror e nos dando a “íntima imagem do objeto” (Edschmid, 1921, in De Michaelis, 2004).
Dessa forma, o cinema alemão passa a desenhar uma investigação imagética que se posiciona contra as representações realistas positivistas e passa a dar contornos ao imaginário alemão pós-guerra que também se compunha de sentimentos como medo, pessimismo, revolta e solidão. O que vemos em “Nosferatu” se repete em outras obras do mesmo gênero e período com cenografias expressivas que tentavam materializar esse estado de espírito, é por isso que vemos muitas sombras, estruturas pontiagudas, perspectivas exageradas que acabam por deformar a imagem da realidade. A consequência disso é também um olhar extremamente aguçado com a composição das cenas, com os enquadramentos, com os contrastes e com a encenação das imagens, dando um aspecto teatral ao filme.
Imagem do Google.
Também não é à toa que o filme carrega o subtítulo “Sinfonia do Horror”, onde a trilha sonora originalmente composta por Hans Erdmann buscava traduzir a experimentação emocional que havia sido feita com as imagens. É sabido que o que acessamos hoje em torno da musicalidade de “Nosferatu” é esforço de algumas reconstituições que tentaram organizar o material perdido do compositor. Na exibição realizada no Clube Frisson, a sonorização improvisada e ao vivo realizada pelo GIL UFRN parece nos trazer a seguinte questão: o aspecto performativo da sonorização que é composta e executada pelos artistas enquanto os mesmos assistem ao filme conosco não aponta para a criação de uma atmosfera sonora mais impressionista do que expressionista? Os impressionistas buscavam materializar as percepções externas em relação à realidade, enquanto que os expressionistas, sendo críticos a este modelo, buscavam “revelar seu significado fundamental” (Edschmid, 1921, in De Micheli, 2004) ou “golpear o centro da realidade” (De Micheli, 2004); tanto que Erdmann, mesmo misturando diversas referências musicais como o próprio Romantismo, ainda assim, pareceu se esforçar em encontrar uma sonoridade para cada coloridade do filme. Dessa forma, os expressionistas nos ensinavam que “penetrar” na realidade se distinguia de “reagir” ou “observar” a realidade, e só a primeira ação seria capaz de fazer emergir os verdadeiros sentimentos em todas as suas ambivalências. Apesar da extraordinária execução da sonorização que trouxe outras camadas sensoriais teatralmente significativas para a experiência, como elenquei acima; é também notável como algumas cenas pareciam sugerir alguma agitação sonora ou até silêncios que não eram executados naquele instante.
O último aspecto que gostaria de destacar aqui é em relação à narrativa e suas personagens. Considerando que esse filme tem mais de cem anos de existência e que o alcance das imagens do cinema é uma revolução técnica e estética por si só, a experiência de assistir “Nosferatu” atualmente nos faz perceber o surgimento e desenvolvimento de algumas imagens que se cristalizaram em nosso imaginário mesmo com suas reinvenções. A escolha por apresentar a narrativa de uma figura mística como o vampiro fez com que Murnau tivesse a possibilidade de desenhar significativamente o contorno dessas representações, dando materialidade e maleabilidade aos nossos pesadelos. Existem inúmeras teorias e estudos que tentam versar sobre a simbologia em torno dessa figura, desde a sua relação com uma nobreza decrépita e cadavérica (que estava em queda com a ascensão da burguesia), até sua relação com o sobrenatural e o demoníaco derivado do desconhecimento comum em torno do “após a morte” e também das “existências sádicas”, ou então uma representação da psiquê masculina e sua tensão entre o desejo e a aniquilação, ou até uma tentativa de materializar o espanto em torno das experiências de contaminação ainda não elucidadas pela ciência da época. Os vampiros não seriam apenas frutos de uma imaginação fértil, mas uma criação imagética concreta em torno do desconhecido ou das distâncias repulsivas.
Interessante notar como o mistério em torno da maldade humana é personificado em figuras místicas como algo trágico e que se torna intrínseco a sua condição corporal e existencial; ou seja, distanciada de uma reflexão crítica que considere a relação cultural entre humano e sociedade, parece que seguimos, em algumas situações, com uma herança de naturalização e patologização absoluta da violência. O que indica dizer que, mesmo as narrativas mais sobrenaturais, e talvez principalmente elas, seguem construindo uma percepção da estrutura social que vivemos. E diante disso, é impossível não observar o percurso narrativo da personagem Ellen Hutter, figura perseguida por Nosferatu. Ellen é apresentada no filme com um protagonismo evidente, mas ao mesmo tempo, é totalmente apoiada em uma estrutura religiosa que apresenta as mulheres como um misto de inocência, desobediência e sacrifício, reiterando seu papel social a partir desses paradigmas. Assim como Eva, na mitologia bíblica, Ellen acaba por ler as narrativas sobre Nosferatu mesmo que seu marido tenha avisado para não fazê-lo e assim ela finda por despertar mais ainda esse “mal”; simultaneamente, é ela, através do sacrifício de si mesma que pode libertar a humanidade inteira dessa maldade e por fim a existência de Nosferatu. As histórias que repetem imagens de morte das mulheres não as tornam descartáveis, ao contrário, as mulheres são fundamentais enquanto objeto de libertação do outro; numa sociedade patriarcal, a submissão se constrói como fetiche, mas em paralelo a isso, o sacrifício se afirma como estrutura afetiva. Ambas as noções desumanizam a existência da mulher, em prol da “humanização” dos demais.
Por fim, é curioso e encantador como os distanciamentos e dissociações podem elevar a sensorialidade de uma experiência artística a outros patamares. A exibição de uma criação tão distante de nós temporalmente, em um formato que evidencia as partes e uma dimensão performativa de apresentação pode nos fazer perceber o modo como observamos, sentimos e elaboramos nossas mitologias, sejam elas discursivas ou práticas.
Referências:
"As Vanguardas Artísticas", de Mario De Micheli (2004).
"A Música de Hans Erdmann no Filme Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens (Friedrich Murnau, 1922)", de Anna Amorós-Pons e Nuria Gómez-Otero (2021).
"Mysterium Iniquitatis: Nosferatu e o Fundamento do Político", de Guilherme Klausner (2020).
"Crítica do Teatro I; da Utopia ao Desencanto", de Jean-Pierre Sarrazac (2021).