fui dormir com vontade de sonhar

Por Alexandre Américo
13/07/2024

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Nota da Editoria do Farofa Crítica (1): Esse texto foi escrito por Alexandre Américo e Pedro Vítor (TORTA, Plataforma de Arte Expandida).

 

Enquanto um corpo preto no mundo, tenho realizado um esforço de transitar por contextos artísticos negados a nós, durante a conformação do projeto colonial que insiste em soterrar as nossas existências e modos de produzir saber.

Com isso, avanço nesta escrita para firmar um desejo antigo de ensaiar, criticamente, a experiência de assistência de peças artísticas. Logo, a partir de agora, exercitarei um tipo de escrita fresca que será realizada logo após a apreciação estética de obras que possuam as emergências do corpo enquanto assunto para suas ativações e deslocamentos.

No dia 04 de julho de 2024, na Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte, aconteceu a abertura da exposição “Nordeste Expandido: estratégias de (re)existir”, que consistiu em roda de conversa onde , dentre outros, estavam os potiguares Alcino Fernandes (RN) e Consuelo Véa Coroca (RN), seguida da performance “Brinquedo: de onde surgem os sonhos?, de Tieta Macau (MA), Ruan Francisco (MA) e Tuan (CE/PB).

A performance “Brinquedo”, evoca a emergência dos sonhos e de seus compartilhamentos para a saúde da comunidade, bem como a manutenção da história dos corpos que operam nas encantarias.

Um sonho com outro tipo de sociedade, uma serpente que liga o passado de nossos ancestrais e suas tecnologias à invenção de um possível futuro. Neste experimento performático, nos despimos das roupas do presente e bebemos da macumba inebriante que restaura o nosso axé. A força deste rito está, justamente, na elaboração macumbada de uma partilha. Na cumplicidade e proteção da luz da fogueira, debaixo do céu estrelado, em meio a papangus que jogam com o imaginário do público. Ouvimos também, histórias de um tempo que já passou, mas que ainda virá. Essas figuras encarnadas nas máscaras, em ecolalias comunicativas não verbais, cheirosas de suor, pelos queimados, vinho barato, sal e pau de santo, assustam por serem dotadas de outro tipo de saber que desafia a binariedade da história escrita em folha de papel em branco do não saber colonial.

E por localizar e constranger a norma branca que rege o piso e as paredes desta tal Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte, esta instauração, parece fazer vacilar as forças conservadoras da cidade do Natal que insistem em reverenciar as sucessivas invasões imperialistas portuguesa, holandesa ou dos norte americanos durante a Segunda Guerra Mundial. E aqui, se faz o revés, se reverencia a tecnologia ancestral que guia a história de nossos povos originários: as viagens oníricas e seu compartilhamento numa gira onde o humano volta a ser um corpo coletivo que sonha, uma peça que queima a moral do presente com encanto, caboclagem e macumbaria. E assim, podemos sentir essa coisa que não se nomeia, mas que parece atualizar, para além da ideia de arquétipos, uma certa noção de um teatro ritual.

 

Tieta Macau (MA) na performance "Brinquedo" (2024). Imagem cedida pelos autores do texto.

Poderia dizer também que este modo de operação ritualizado é jeito de fazer/sentir do artista que comentarei a seguir.

Alcino Fernandes, lança-se no escuro da carne de sua infância em busca de elaborar, desde seu retorno à superfície da matéria, a experiência dolorosa e igualmente bela de suas obras de arte aqui expostas. Estas peças impactam por sua crueza que, de súbito, captura nosso corpo feito um golpe sangrado, uma perfuração dolorida que nos faz pausar. Ao refletir a brutalidade da periferia e o modo como ela corrompe os imaginários infantis, Alcino avança num ataque sensível à romantização do imaginário cooptado de uma certa ideia de PERIFERIA CORDIAL. Aqui, o artista nega-se a delirar. Ele escolhe ficar com os tons marrons de terra seca e do sangue derramado, de gente violentada todos os dias na cidade de Mossoró (RN).

NÃO NOS ENGANEMOS: a violência destrói a condição de criação de memória.

Corajosamente, Alcino propõe, em suas obras, a instauração de uma relação de intimidade entre a audiência e suas peças, nos convocando ao compartilhamento de suas percepções estéticas orientadas ao campo de sua cotidianidade e seus atravessamentos enquanto um corpo racializado que recusa, constantemente, a INVENÇÃO BRANCA DE SANIDADE.

Sua obra nos faz lembrar que nosso modo singular de elaborar a realidade estética que nos constitui enquanto seres de memória, num tecido social em crise, sobretudo corpos pretos situados nas periferias, é fundamentado em parâmetros outros que escapam às ideologias hegemônicas que controlam discursos e escolhas de materiais, bem como o que pode ou não ser digno do estatuto branco de obra de arte.

Obra do artista Alcino Fernandes (RN) que integra a exposição "Nordeste Expandido". Imagem cedida pelos autores.

E por falar em estatuto de obra de arte, Consuelo Véa Coroca, alinhada à profundidade da duração da representação de corpas mutiladas, DEFs, femininas, velhas, marginais, nos muros do estado do RN e em todo Brasil, como que tecendo uma estranha cartografia capaz de orientar pedestres tendo estas figuras como REFERÊNCIAS territoriais,  propõe um movimento oposto e complementar às peças de Alcino Fernandes em sua viagem introspectiva. Ela, Vea, põe a cara na ferida e nos puxa para fora, convocando-nos a ENCAPUCHAR. 

Nas ruas de nossas cidades, por onde formos, o assombro que  Consuelo produz, parece onipresente. A Vea nos espreita, nos inquieta e impacta, mobiliza, em nós, um esperançar, um agir encapuchado, um movimento sem rosto (pois a comunidade é mais importante que o indivíduo) capaz de desfazer as mazelas capitalistas que operam regulando nossos corpos para que possamos gozar de nosso axé.

Não nos esqueçamos, porque “na prática, há um abismo” entre o fazer e o ser. Aliás, lá vai um ponto de inflexão que marca a prática ética-política-estética dos três artistas aqui comentados e de uma RUMA de artistas nesta cidade: AS COISAS SÃO FEITAS NA TORA!

Gosto de aprender com esta Tapuia Guaraíra, gosto de deixar vibrar, em meu corpo, as cores dessa serpente tricolor e encantada, eu gosto de sonhar com a coral e nossas cobras de proteção.

 

VERMELHO

PRETO

BRANCO

 

Deveríamos ficar atentos ao movimento que está se dando na atmosfera desta cidade. Algo está acontecendo, há um tipo de encantaria pesada sendo gestada no campo das artes. Estejamos sensíveis e inclinados à escuta. Pois, como me ensina a Vea, devemos escutar, com todo o nosso corpo, a MAESTRIA, os encantados e dar sim aos seus ensinamentos. 

Pois, o NOSSO FUNDAMENTO É OUTRO: é o piso comum da arte que reverencia àqueles que fazem o decurso de nossa ancestralidade preta, indígena, cigana que tensiona e perfura, a todo o tempo, a realidade que nos é apresentada.

É a Véa de Consuelo Véa Coroca em Natal (RN). Imagem cedida pelos autores.

Após retomar o axé que nos pertence, recosto a cabeça na esteira e volto a sonhar com o desejo de partilhá-lo com os pares que fazem o nosso corpo em comunidade, pois como diz Consuelo:

ESTA É UMA PANCA ANCESTRAL.

 

Nota da Editoria do Farofa Crítica (2): Esse texto foi escrito a partir da abertura da exposição "Nordeste Expandido: Estratégias de (Re) Existir" que aconteceu na Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte, na cidade do Natal, no dia 04 de julho de 2024. Em ocasião da abertura aconteceu a Roda de Conversa "Na Lua Clara vem Dançar: Força, Existência e Devir. A pintura e o desenho através das experimentações do corpo", com Consuelo Vea Coroca (RN), Alcino Fernandes (RN), Heitor Dutra (PE) e Iyá Boaventura (BA). Com mediação de Max Pereira (RN). Esta exposição foi promovida pelo Banco do Nordeste Cultural.

Clique aqui para enviar seu comentário