Por Heloísa Sousa
11/08/2024
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Uma linha imaginária e arbitrária divide o mundo em Oriente e Ocidente. Essas duas ideias derivam das expedições marítimas europeias que marcam a Idade Moderna e concretizam as inquietações e impulsos colonizadores desses navegadores na tentativa de documentar, compreender e dominar o que eles observavam enquanto se lançavam para outros territórios. Oriente e Ocidente se somam, então, às nossas tendências de “organizar” o caos, a diversidade e a dialética em algum princípio binário que, frequentemente, sustenta uma oposição. Noite e dia, claro e escuro, bem e mal, mente e corpo, homem e mulher, verdade e mentira. Para cada ideia, matéria ou conceito, posiciona-se um duplo em oposição que, pela sua radical assimetria (ou diferença), tende a definir ambos. E a partir dos binarismos, nós nos posicionamos.
Ou seja, o dualismo (e a binariedade e as oposições) é um artifício cultural, que consegue estruturar e reduzir, simultaneamente.
“Clenyldes e Clenôrys ou a Irresoluta História de Paraíso, a maior pequena cidade do mundo”, nova peça teatral da produtora Casa de Zoé, parece ser uma obra sobre o dualismo. E um dualismo que não apenas se restringe às suas elaborações conceituais, mas que também parece pôr em evidência as estruturas do teatro (ou as “leis do teatro” para usar os termos de Picon-Vallin, 2008).
Com direção e dramaturgia do potiguar César Ferrario, direção musical de Caio Padilha e direção de arte de João Marcelino; esta encenação segue com as inquietações latentes nas obras de Ferrario em torno de uma estética do absurdo e da convenção teatral, já evidente desde o texto dramatúrgico “Guerras, Formigas e Palhaços” (2013). Em cena, quatro atrizes (Nara Kelly, Ananda K, Titina Medeiros/Camille Carvalho e Tiquinha Rodrigues) e quatro atores (Dudu Galvão, Toni Gregório, Yves Fernandes e Robson Medeiros) falam, cantam, tocam e dançam como em um teatro de variedades, a história de Clenyldes e Clenôrys, duas irmãs gêmeas de pais distintos. A rivalidade dos pais já desenha a primeira dualidade que parece se replicar nas duas crianças. Na pequena cidade fictícia de Paraíso, se desenrola essa situação narrada por duas figuras coadjuvantes: uma empregada e um gato, como um gesto de deslocamento, ouvimos a “verdade” pela ótica de duas figuras menos favorecidas, mas que testemunham toda a situação. Apesar disso, é uma outra figura que parece tomar a frente e protagonizar a história, uma professora-de-piano/coronel ganha tamanho destaque a ponto de centralizar-se na narrativa. Enquanto que a dualidade representada pelas duas irmãs/pais é operada e atuada em cena como artifício.
Conhecemos a disputa e o dualismo das figuras paternas, explicitamente figuras masculinas de poder; e assim, supomos a disputa e o dualismo das duas irmãs, explicitamente figuras femininas e herdeiras. Não sem também tomarmos consciência de que, apesar do dualismo, há uma única matriz que origina e conecta esse duplo. O duplo aqui se resolve como oposição e, enquanto oposição, sugere o embate. Mas esse duplo também parece ser apresentado como uma linha que se cruza (ou se sobrepõe) em alguns momentos para se dissociar em outros.
Se a ideia de dualismo pode ser percebida como o conteúdo desta encenação, sua forma é marcada pela exposição de um esplendoroso maquinário cênico. A cenografia é pura engrenagem, proposição que também se estende às atuações ao recorrer aos diversos tipos de teatralização com formas animadas, sejam os mascaramentos, o teatro de objetos, as marionetes ou o teatro de sombras. Os “fundos” da encenação teatral tornam-se visíveis como recursos antiilusionistas, mas sem deixar de manter-se “fundos” (o que faz manter a ilusão também, em alguma medida, visto que nossa visão consegue anular com facilidade aquilo que não está em primeiro plano). Entretanto, as cores vivas, as luminosidades e as transformações da cena pela variedade dos recursos cenotécnicos e de atuação, por vezes, tomam um lugar de privilégio na nossa recepção a ponto de tornar-se a “figura” em si, transformando a narrativa em “fundo”, de forma intencional.
Ao tentar elaborar um dualismo entre “figura” e “fundo”, entre narrativa dramática e estrutura teatral, a obra aposta em um jogo de ênfases, quando em determinado momento algum aspecto se torna tão vibrante que é inevitável seu destaque. Ou seja, torna-se uma questão de perspectiva (o que está ao centro versus o que está à margem ou ao fundo). Tanto que os planos desta peça se organizam de forma vertical, são os usos sucessivos de quadros e molduras que vão construindo as camadas teatrais (num parâmetro cenográfico, organizar de forma horizontal, seria compor com os chãos). Algo toma a frente. A questão a se pensar aqui é que um “jogo de ênfases” (portanto, de protagonismos) não denota, necessariamente, nem contradição e nem dialética. Em “Clenyldes e Clenôrys” não há oposição entre figura e fundo, a forma não contradiz o conteúdo, ao contrário, reitera a tentativa de narrar.
Se o fundo reitera a figura, ou vice-e-versa, ao mesmo tempo em que tenta se descolar dela, evidenciando o dualismo; isso acaba por ser feito com o recurso da ornamentação. Não sendo contraditórias em suas “essências” (a teatralidade e a narração), sua diferenciação finda por ser construída por “sobreposição de vibração”, como se cada elemento disposto em cena estivesse disputando o nosso olhar (e, portanto, disputando entre si). Os elementos da encenação replicam a dinâmica das gêmeas personagens; ora estão em uníssono, ora se enfrentam, mas seguem desconhecidas em suas singularidades. Com exceção da pureza das cores, tanto a ornamentação quanto as linhas de algumas estruturas de ferro no cenário nos remete ao estilo rococó ou até mesmo à belle époque, que inspira igualmente a arquitetura do Teatro Alberto Maranhão. O que aqui se nomeia como força da imagem, numa tentativa de elucidar a sensorialidade, o erotismo e a crítica da mesma; na realidade, finda por converter-se numa exaltação das linhas, das cores, dos artifícios e das luminosidades, ou seja, torna-se uma questão de superfície. Junto a isso, desenha-se uma narrativa que não se coincide com o teatro do absurdo em sua verborragia ritmada e existencialista, mas sim ao recurso do lirismo e seu rebuscamento das palavras.
Ainda assim, é notável no gesto artístico de Ferrario, enquanto encenador e dramaturgo, um interesse pela força sensorial da imagem, da teatralidade, e, ainda mais, pela crise da linguagem - contra a significação e contra a interpretação. Tanto que, suas próprias obras remetem em verbos e em figuras, a um encanto por uma estética do absurdo (o aparecimento explícito de uma cabeça de rinoceronte na encenação, citação direta) ou ainda por alguma performatividade da imagem. Mas, talvez seja justamente o apreço à narrativa como ponto de partida ou à ornamentação da imagem que o faça escapar de seus próprios anseios.
Observando o teatro natalense que vem se criando pós-pandemia é evidente a carência de uma prática teatral arriscada, que duvide da própria linguagem e possa forçar seus limites (como fazia a Bololô Cia. Cênica, as peças teatrais da Sociedade T, as performances do Projeto Disfunctorium, o teatro físico de Sandro Souza e as experimentações do Coletivo ES3, entre 2009 e 2018) . Nesse sentido, o que nomeio como impulso latente em Ferrario pode ser uma faísca sobrevivente disso, ainda que sustentada por uma teatralidade segura.
Por fim, sem fim, a peça se concretiza irresoluta como sugere no próprio título. Irresoluta porque a narrativa não apresenta desfecho, irresoluta porque a própria questão do dualismo não é radicalmente enfrentada; mas irresoluta, principalmente porque a máquina teatral interessa mais a Ferrario do que suas significações e a partir disso, a encenação não se abre para que um narrador de outro mundo possa vir dar seu depoimento, ao invés disso, a encenação se abre para a próxima obra.
Crítica escrita a partir da apresentação realizada no dia 10 de agosto de 2024, no Teatro Alberto Maranhão, em Natal (RN).
Ficha Técnica de "Clenyldes e Clenôrys":
Direção e Dramaturgia: César Ferrario
Elenco: Ananda K, Camille Carvalho, Dudu Galvão, Nara Kelly, Robson Medeiros, Tiquinha Rodrigues, Titina Medeiros, Toni Gregório, Yves Fernandes
Direção de Arte e Figurinos: João Marcelino
Direção Musical: Caio Padilha
Colaboração de Dramaturgia: Márcio Benjamin
Desenho de Luz: Ronaldo Costa
Preparação Corporal e Direção de Movimento: Dudu Galvão,
Colaboração dos Arranjos e Trilhas Originais: Dudu Galvão, Toni Gregório e Yves Fernandes
Assistente de Direção: Camille Carvalho
Assistente de Arte, Maquinaria e Dispositivos Cênicos: Shicó do Mamulengo
Equipe de Arte e Figurinos: Irapuan Júnior, Kadu Oliveira e Andrea Oliveira
Técnico de Luz Objetos: Ijailson Moreira e Wilberto Amaral
Arte Objeto Rinoceronte: João Ricardo Aguiar
Bonecos de Articulação: Shicó do Mamulengo
Costuras: Fátima Rocha e João Marcelino
Coordenação Geral de Produção: Arlindo Bezerra
Direção de Produção: Carol Carvalho
Elaboração de Projeto: Titina Medeiros, César Ferrario e Arlindo Bezerra\
Captação: Agreste Cultura e Comunicação
Produção Técnica: Janielson Silva
Operador de Luz e Cenotécnico: Sandro Paixão
Desenho de Som: Gabriel Gianni
Operador de Som e Cenotécnico: Flávio Torreão
Consultor de Som: JF Santiago
Fotografias: Pablo Pinheiro
Registro Fotográfico: Brunno Martins
Teaser: Carito Cavalcanti e Mylena Sousa
Identidade Visual: Renato Quaresma
Social Mídia: Vitor Búrigo
Assessoria de Imprensa: Gustavo Farache (G7 Comunicação)
Equipe de Apoio: Francisca Tainara Paiva Silva, Maria Francisca Barboza e Dantas Júnior
Estagiários: Aninha Nascimento, Cléo Morais, Leo Léo, Luiz Júnior, Ranieri Fernandes e Salésia Paulino