SABER-NÃO-SABER-DANÇAR

Por Heloísa Sousa
07/09/2024

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

“É isso, portanto, o que está em jogo: saber, mas também pensar o não-saber quando ele se desvencilhar das malhas do saber. Dialetizar. Para além do próprio saber, lançar-se na prova paradoxal de não saber (o que equivaleria exatamente a negá-lo), mas de pensar o elemento do não-saber que nos deslumbra toda vez que pousamos o nosso olhar sobre uma imagem da arte. Não se trata mais de pensar um perímetro, um fechamento - como em Kant - trata-se de experimentar uma rasgadura constitutiva e central: ali onde a evidência, ao se estilhaçar, se esvazia e se obscurece”. (Georges Didi-Huberman)

 

Quanto mais pesquiso, estudo e pratico a observação e a criação artística, mais vezes eu acabo caindo na mesma palavra: magia. E findo, então, por defender a arte como magia. Esse algo (coisa? palavra?) sequestrada e lançada em um calabouço, queimada viva, forçada ao pejorativo; mas, que na realidade, é manuseio de formas, forças físicas e campos de sensações (in)visíveis que transcendem (excedem os limites comuns) (d)as significações e nos devolvem (profanam) à densidade da própria materialidade sensível. Algo que parece reverberar forte no que artistas como Tieta Macau (MA/CE) vem nomeando como encantarias, ou no que Elisabete Finger (PR) vem chamando de encantamento da matéria, ou ainda no que Alexandre Américo (RN), junto com a Torta Plataforma, vem investigando como manifestações. Esteticamente também ressoa em “Encantados” (2022), trabalho recente da Lia Rodrigues Cia. de Danças (RJ) e nas investigações artísticas do coreógrafo Marcelo Evelin (PI). Há algo em torno disso que instaura presença e sentido (aisthesis) de modo profundamente radical, tão radical (de radicalis, relativo à raiz) que alcança paradigmas outros de origens postas à margem. Junto ao desmoronamento de uma “normatividade da significação”, parece haver também um flerte intenso com a composição minimalista, que nas artes da cena se atenta à repetição de uma unidade e a produção de ritmo com essa base. 

Foto de JAN.

“Chão” é uma obra em dança com coreografia de Alexandre Américo para a Cia. de Dança do Teatro Alberto Maranhão (CDTAM) e que se une a outros trabalhos desse mesmo artista em um fluxo contínuo de investigações práticas sobre as manifestações da terra ou sobre as pequenas danças, para usar os termos do próprio Américo. Podemos pensar numa confluência direta entre esse trabalho e o solo “Bípede sem Pelo” (2022), junto da mais recente estreia de Américo, dessa vez com o Grupo de Dança da UFRN (GDUFRN) em “Zambê de Contra-Ataque” (2024), como quem estrutura uma trilogia que lida tanto com a matéria-cultura do chão (não conceito, pois não arrisca definição por mais instável que as definições sejam), quanto pela composição a partir do vestir. Esse circuito comprova a relação intrínseca entre todas as obras artísticas concebidas por Alexandre Américo enquanto materiais que emergem de suas investigações em torno da dança; pois, se retrocedermos em sua trajetória, encontraremos pistas de tudo o que se manifesta hoje já em “Cinzas ao Solo”. Assim como Andrei Tarkovsky dizia ter filmado um único filme sua vida inteira que se materializou em nove longas-metragens; percebo que Américo vem dançando uma única obra que se alarga e se matura no tempo, oferecendo uma experiência singular de descoberta para quem o acompanha por anos. Américo percebe a dança como um problema e oferece a ela, obras de fronteira que alargam seus horizontes. 

Em “Chão”, seis bailarinos (Bárbara Luz, Bruno Borges, Júlia Vasques, Manu Souza, Margoth Lima e Weller Alves) vestem cabeças como máscaras compridas e com potencialidade sonora (adereços sublimes confeccionados por João Marcelino), seus corpos estão vestidos com peças de formatos e materialidades simples, mas que articulam brilho e cor. Discordo fortemente da ideia de que ali os bailarinos vestem “roupas de ensaio” ou qualquer tipo de “neutralidade”, pois não há nada de despretensioso ou desavisado na composição imagética desta obra. Figurinos não são apenas as “peças de roupa” e nem são, necessariamente, índices de alguma representação; figurinos são linhas de movimento que se materializam na superfície do corpo em cena para transformar ou transfigurar o mesmo. O que os bailarinos vestem em “Chão” é a ativação daqueles corpos reconhecendo dialética e sobreposição; é também sobre instauração de uma presença em desordem de cor e forma, ao invés de seguir a ordem harmônica de alguma “expectativa de combinatória”. O vestir-se tem ganhado tamanha atenção nas obras de Américo, sinalizando outras formas de apresentação dos corpos, com materiais comuns e que não apenas vestem o corpo, mas movem o corpo e se movem em si. Nesse sentido, os figurinos e adereços também giram, torcem e estalam no chão, evocam por matéria-movimento-sonoridade um transe extraordinário. Os bailarinos parecem estar sem a visão, para então tornar evidente a visão do corpo em si, os fios de miçangas que pendem da cabeça se eninham, as cabeças pesam e voam, parecem perder o controle mas seguem conectadas com algum eixo, é uma gira do universo com suas coerentes e fundamentais explosões (a explosão como fundamento). Nisso, o trabalho primoroso da composição do produtor musical Mateus Tinoc apresenta uma sonoridade com transições quase imperceptíveis, embora de presença notável; um experimento com a música que não conduz nossas percepções de forma violenta e explícita, mas que serenamente se apoia sob nossas experiências.    

De pé, eles começam a mover-se pelo espaço com movimentos mínimos, os dedos dos pés “comendo” o chão para se deslocar até a expansão. E então, inicia-se um fluxo contínuo e crescente de espirais orgânicas que beiram a desordem, torções e solturas, eixos pendentes e pesados que se reorientam para manter-se em fluxo, eles quase descem mas as pisadas fortes no chão lançam o corpo para seguir em rota. Até que no ápice desse intenso eles pausam no chão. O verbo cair também parece não caber tão bem aqui; porque não há ruína, nem desmoronamento, nem absoluta perda; os corpos pausam em posição (e sabedoria) de ainda poder retornar. As cabeças pousam no chão porque as matérias que transam com os artistas que dançam tem ganhado alguma sacralidade nas obras de Américo, mas nunca mais do que os corpos em si. O sagrado é a memória material do acontecimento cênico - tudo aquilo esteve ali.  


Desenho da autora feito após o espetáculo para esquematizar o movimento da obra no tempo. 2024.

 

Há algo notavelmente minimalista nessa composição (e em outras de Américo) que podem soar contrastante com a diversidade das cores e com o volume e agitação dos materiais. Entretanto, o minimalismo em cena não corresponde nem à monocromia e muito menos a uma redução quantitativa ou dos detalhes da forma como nas experimentações das artes visuais; mas sim, à composição de ritmo através da repetição de alguma unidade. Os movimentos dançados em “Chão” parecem corresponder a uma dilatação e transformação da mesma unidade, como se um mesmo fio pudesse se retorcer sem perder a confiança em sua matéria. Mas, se as perspectivas artísticas minimalistas do norte global almejavam uma experiência tautológica com a arte (“o que você vê é o que você vê”) como forma de superar o vício da significação e nos desafiar no encontro com o vazio; as perspectivas artísticas minimalistas do sul global e brasileiro parecem direcionar essa superação do vício da significação para um encontro com a densidade e, portanto, com os “muitos de nós” (ao invés da representação de nós).

A lida com a expectativa da interpretação ao encontrarmos uma obra de dança também integra nossa experiência; apesar de parecer que a dança também se utiliza da estrutura coreográfica convencional para lidar com essa espera; como quando uma coreografia é estruturada para ser uma forma de transformar a dança em códigos e repousar ali a sua significação. Se ao contrário disso, a dança se estrutura na técnica de improvisação - como acontece nas obras de Américo, ela tende a escapar dessas significações e beirar a sensação do vazio. A questão é que os significados que damos às coisas só se justificam na ausência delas. É também um modo nosso de escapar da pura e inominável presença das coisas. Ao dizer que uma matéria ou um movimento representa alguma outra coisa, eu anulo a matéria-movimento em si e passo a dialogar com o mundo a partir apenas do significado que eu dei aquilo. Se alguns teóricos e artistas repetiram a ideia de que fazemos isso com receio de lidar com o vazio da matéria-movimento, a arte da cena elaborada aqui por Américo e suas parcerias, assim como pelos outros artistas nomeados anteriormente, finda por contestar essa teoria ao trazer também a experiência de densidade e preenchimento quando desviamos da significação. Algo acontece forte em nós, mesmo que não saibamos nomear. Por esta razão também discordo da ideia de que “Chão” possa ressignificar algo, pois ao contrário disso, a obra presentifica a dança enquanto magia, desobediência, pulsão e evocação do mesmo ritmo vital que compõe nosso caminhar. Portanto, mesmo que vejamos muito das danças populares do Nordeste nas manifestações da terra que estão sendo experimentadas por Américo, não há ali uma citação a essas danças ou o movimento de tomá-las como referência em algum procedimento mimético; é, ao invés disso, proposição de diálogo direto (enfrentamento), como quem cria outras palavras a partir do mesmo radical. 

Nesse sentido, a obra também torce o saber dançar. É possível duas lógicas nisso: o saber dançar que repete a estrutura previamente aprendida e se torna presente quanto mais se aproxima do ideal estabelecido (sendo, então, paradoxalmente também uma ausência), e o saber dançar que performa (improvisa) a partir de uma linguagem que se aprende, como aquele que sabe as palavras, mas ainda não sabe as frases que irá pronunciar e se torna presente através do presente do próprio acontecimento. É também nessa encruzilhada que se dá o encontro entre a prática em dança de Alexandre Américo e a prática em dança dos bailarinos da Cia. de Dança do TAM. Um encontro que não invisibiliza as próprias ranhuras, engasgos e faíscas; oriundos tanto do repertório da companhia, como do eco nas nossas expectativas em relação a esses dois parâmetros. Considero que há uma dialética e uma tensão visível nos corpos dos bailarinos, que não esconde o que compõem os artistas que se encontram e elabora sua força também nessa fragilidade. Não faz sentido que aqueles pés neguem tudo o que já dançaram e que modelam suas formas; o jogo está em fazer esse mesmo corpo percorrer outros percursos a partir de suas memórias (e traumas) - assim como fazemos na vida. A decolonialidade, então, não se elabora por uma reversibilidade impossível do tempo, mas sim, por um reconhecimento crítico dos processos coloniais e uma busca por instaurar espaço para aderir a outras matrizes. E assim, o que está em jogo em “Chão” é muito menos a execução técnica de uma coreografia e muito mais a apresentação de um gesto artístico, cultural e político derivado desse encontro, assim como a proposição de uma ideia, de um projeto estético, de um processo de materialização de uma arte. E nisso, não posso deixar de pensar que parece que, finalmente, um artista dança fez essa companhia dançar

Foto de JAN.

Por fim, destaco outro gesto muito significativo nas últimas obras coreográficas de Américo: à ocultação dos rostos, seja na estruturação de novas cabeças, no encapuzamento (em referência à artista potiguar Consuelo Véa Coroca) e em múltiplas estratégias que retomam os trajes como microcosmos que transformam o corpo para que ele penetre outros mundos (eis a ancestralidade dos figurinos, os mantos que fazem o corpo transcender). Esses ocultamentos borram as individualidades, para dar contorno às singularidades que compõem as comunidades; por esta razão, é que as diferenças seguem presentes, mas sem as estratégias de identificação. “Dançar sem rosto, em piso comum”. E é daí que podemos tirar uma pista muito importante para ver a dança que Américo vem se propondo a construir quando compõe com coletividades. Como público, podemos experimentar olhar sempre o acontecimento cênico por inteiro (todo o quadro alcançado pelo campo da visão), e quando a visão tentar focar em algum bailarino ou detalhe específico, ao nos observar observando poderíamos buscar desviar desse hábito. Isso porque a obra se sustenta como experiência integral de movimento entrelaçado entre os corpos que ali sentam e dançam. 

Ao olhar para uma figura e estabelecer com isso um fundo, a obra despenca. Ao manter-se olhando o todo, ou seja, a comunidade, a obra transcende. 

Lembro que vi Américo dançar pela primeira vez em meados de 2010 e dali imaginei - como uma previsão - o dia em que veria aquilo que senti ao ver “Chão”. Sinto que vi, até então, nove obras em dança concebidas por esse artista ao longo de dez anos como quem vê um artista em composição de si e de seu entorno, e que, para meu espanto, me fez perceber que eu estava me compondo simultaneamente como espectadora de dança. Ainda sentada no chão de “Chão”, depois da obra pensei “agora eu consigo ver”, depois de mais de dez anos, Américo me ensinou a ver... ver a dança com tanta nitidez e brilho, com tanto transe e concentração, que me emocionei ao me observar observando. Um percurso longo, sinuoso, por vezes áspero, mas trilhado por Américo com muita parresia, já que muitas das críticas que ouvi a essa obra parece vir de uma recusa a observar criações em terrenos promíscuos, ou uma expectativa pelas purezas ideológicas.

 

“Para que haja parresia é preciso que, dizendo a verdade, se abra, se instaure e se enfrente o risco de ferir o outro, de deixá-lo com raiva e de suscitar de sua parte algumas condutas que podem ir até a mais extrema violência”. 

(Michel Foucault)

 

E digo tudo isso para poder enfatizar que as apresentações dessa tríade de obras - “Bípede sem Pelo”, “Chão” e “Zambê de Contra-Ataque”, principalmente enquanto propostas de composição, instauram uma guinada histórica na prática e no pensamento em dança em Natal (RN)... guinada essa que já havia sido dada anos atrás com a obra “EXIT” desse mesmo artista em parceria com Ana Vieira, Guesc, Iêgo José e Yasmin Cabral; que já abria espaço para tensão poética territorial que marca a cena natalense. Se hoje, os espaços de formação de artistas da dança em Natal citam nomes emblemáticos como Steve Paxton, Pina Bausch, Rudolf Laban, Klauss Vianna e Edson Claro, por exemplo, estamos no momento oportuno para adicionar o nome de Alexandre Américo neste rol com suas proposições em torno dos planos coreográficos, das pequenas danças, das manifestações, do vestir em dança e da composição mínima e comunitária a partir de um campo de poeira, sonoridades e sensações. 

 

Esse texto foi escrito a partir da apresentação de "Chão", no dia 27 de agosto, durante a programação do V Seminário Internacional Corpo e Processos de Criação nas Artes da Cena: Saberes da África, realizado no Departamento de Artes da UFRN. 

FICHA TÉCNICA

Direção Artística: Wanie Rose
Coreografia: Alexandre Américo
Dramaturgia e Assistência de Direção: Pedro Vitor
Interlocução Dramatúrgica: Karenine Porpino
Adereçagem: João Marcelino
Trilha sonora: Mateus Tinoc
Dança e Co-criação: Bárbara Luz, Bruno Borges, Júlia Vasques, Manu Souza, Margoth Lima e Weller Alves .
Ensaiadora: Júlia Vasques
Pesquisa, Visualidades e Documentação de Processo: Maria Antonia Queiroz e Pedro Vitor
Produção: Rosy Nascimento

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