O MAL ESTAR DAS ENUNCIAÇÕES

Por Heloísa Sousa
18/10/2024

Esse texto faz parte da cobertura crítica da décima edição do Junta Festival - Dança e Contemporaneidade, realizado em Teresina (PI) entre os dias 15 e 20 de outubro de 2024. O texto é atravessado por discussões com Alana Falcão (Revista Barril, BA), que vem acompanhando o festival como crítica de arte junto da autora desse texto. Para ler o texto crítico de Alana Falcão que também cita essa mesma obra, clique aqui.

 

“A definição de mulheridade não é vaginal; a definição de masculinidade não é fálica”.

Dodi Leal

 

Ao fundo do teatro e na parte superior, lê-se um letreiro escrito TRAVESTI (assim, em letras garrafais). Esse letreiro pisca em alguns momentos pontuais, com a cor rosa e com a cor azul. Mas, mesmo quando apagado ele segue legível, como que marcando o tecido que arma a cenografia da peça. Esse tecido é disposto como uma tela ao fundo com transparência, onde observa-se as projeções na superfície, o que há por trás e a nomenclatura.

A pele humana é como um tecido, com cor e opacidade, que guarda dentro de si um amontoado de carne e sangue já revirados pela ciência de diversas maneiras. É também o contorno que se estende e marca nossa forma. E é um tecido elástico, maleável que se estica, se abre, se enruga ao longo da vida, colecionando nossas transformações intencionais ou acidentais. O corpo não é transparente, por mais que a gente adore presumir e determinar e chafurdar com os corpos (dos outros). O corpo é translúcido e enunciador - o corpo se diz, a corpa se diz. 

 

trans-lúcida (adj. fem.): diz-se de qualquer corpo que deixa passar a luz, mas que não permite que se perceba objetos colocados por detrás dele.

 

É nesse jogo entre o que se vê, o que não se vê e o que parece visível que se instaura a obra “Manifesto Transpofágico”, com atuação e dramaturgia de Renata Carvalho, direção de Luiz Fernando Marques. Jogo fortemente materializado pela iluminação de Wagner Antônio que pontua recortes, sombras, penumbras e pontos de luz trazendo tanta atenção às zonas de escuridão quanto as zonas iluminadas. Pois o que não se enxerga é, neste encenação, tão relevante quanto aquilo que se apresenta. O explícito aqui é como uma armadilha, as coisas parecem óbvias e diretas mas atingem, justamente, o campo minado das enunciações; e ao fazer isso, põe em crise a própria linguagem (verbal e teatral) e expõe as forças políticas e afetivas em torno das determinações. 

As palavras são como feixes de luz que iluminam a superfície dos corpos (e dos objetos), mas que, a depender da opacidade desses corpos (objetos), não revelam suas camadas interiores e podem, inclusive, alterar a imagem no jogo entre o claro e o escuro. Isso não quer dizer que devemos olhar sempre com uma desconfiança neurótica para as luzes, para os corpos (objetos) e para as palavras - desejando manter-se no dilema hamletiano e binário entre ser ou não ser - mas sim, perceber a determinação, a ambiguidade e os escapes, simultaneamente, como característicos da realidade. 

Tem duas questões formais que rodeiam essa obra, que muitos usam para caracterizá-la, mas que eu gostaria de pensar nesse texto sobre a possibilidade da obra parecer tal coisa, mas materializar outra e como isso põe em conflito a realidade sensível e as nomeações. São essas as ideias de que a obra é autobiográfica e pedagógica - e a partir disso, tentarei escrever uma argumentação de que a obra não é nem uma coisa e nem outra. E para quem desejar ler alguma descrição sobre a peça - algo que não farei nesse texto - ou ainda elaborações sobre outros pontos, sugiro a leitura de outras críticas como essa, essa, essa e essa

Antes de tudo é importante destacar como Renata Carvalho tornou-se um ícone cultural deste século, uma artista que representa uma guinada irreversível na cena teatral brasileira. E essa representação não é aleatória, visto que, uma de suas obras mais memoráveis, “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, efetivamente instaura um acontecimento cênico e artístico sem precedentes na história do teatro nacional, traduzindo para o português a contundente dramaturgia da britânica Jo Clifford e desestabilizando discursos e presenças na própria comunidade artística (considero aqui artistas e público). O problema é que transformar alguém em ícone é também uma outra forma de objetificação e de manutenção das ausências - e quando isso ocorre, a artista torna-se então uma mercadoria fetichizada dentro do circuito artístico, o que pode fragilizar sua liberdade de composição e experimentação (espera-se que ícone se mantenha com, exatamente, os mesmos contornos de quando foi categorizado) e o debate crítico em torno de sua produção. A lógica fetichista e a iconização retoma uma sacralização moralista das obras artísticas, onde filiar-se a determinada criação (ainda que do ponto de vista da recepção) torna-se uma questão de caráter. A obra perde em acontecimento e torna-se partido. E tudo isso não é, necessariamente, efeito da encenação, mas também dos gestos curatoriais que não apenas desenham a história da arte, mas também esculpem nossos modos de observação.  

Dito isso, vamos aos pontos que elenquei acima.

A obra “Manifesto Transpofágico” não é autobiográfica. E isso nem é uma declaração arbitrária minha, é algo que é dito no início da própria peça quando a atriz afirma, justamente, a impossibilidade de falar sobre si, enquanto sujeito, porque o seu corpo chega antes de qualquer coisa que ela possa enunciar. Segundo o pesquisador francês Philippe Lejeune, a autobiografia é “o relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, colocando ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua personalidade” (Lejeune apud Leite, 2014, p. 20). Logo, Manifesto se dá justamente na impossibilidade de se encenar uma autobiografia; como se na enumeração das particularidades de um indivíduo que podem ser destacadas para narrar sua trajetória, a particularidade da identidade travesti engolisse todas as outras características e fatos interditando uma narrativa de vida. Então, se não é possível sair desse primeiro ponto, Renata decide nos manter nele gastando a verbalização até o limite da tensão discursiva. Seguindo a mesma estratégia de subverter o significado de uma palavra usada para te atacar, e passar a enunciá-la como afirmação positiva de sua existência; Renata nos devolve a travesti como signo, articulando cenicamente corpo, palavra e significados. Ao fazer isso, algo que não está dissociado dela-mesma-artista-pessoa, parece construir-se em cena uma pretensa vulnerabilidade, e como tal, uma zona desarmada (segura); mas é o contrário disso que se estabelece afetivamente, pois numa manobra cênica astuciosa, o que constroi-se é uma figura de autoridade em cena - a transpóloga - que chega a inverter a espacialidade da peça e nos direcionar a luz para nos confrontar com o que achamos que sabemos sobre identidade de gênero e nossas fantasiosas livres escolhas. Uso aqui o termo figura, para nomear a presentificação da transpóloga em cena e para também me reaproximar do termo personagem, menos pela crise do ficcional e mais pelo dispositivo cênico. Ao falar de "escolher vestir a própria pele", Renata remete prontamente ao gesto que instaura o figurino como elemento teatral - é o vestir para estar em cena que transforma absolutamente qualquer matéria em figurino e é este que, ao tocar o corpo da atriz que a permite adentrar o estado cênico. Lembremos de uma das primeiras citações ao encantamento pelo figurino na dramaturgia ocidental, é de quando Penteus tem sua visão transformada após se travestir, nas Bacantes de Eurípedes. A performance de gênero como composição de si se duplica no teatro. O vórtex em Manifesto está em vestir o próprio corpo, transfigurar-se em si mesma. Dessa forma, naquele instante de cena, Renata desdobra a violência e uma hierarquia intelectual se instaura, elaborada pela dramaturgia e apoiada no subtexto que o reincidente público de obras teatrais contemporâneas carrega: o medo de ser nomeado pelo seu erro - e que a deusa nos livre de sermos “julgades por um ícone”. E não sendo autobiográfica, Manifesto escapa das cansativas e neoliberais celebrações do “eu” que tem rondado a cena contemporânea; embora ao atuar seu próprio corpo, ela exponha a atriz à armadilha da iconicidade - a mais eficiente e atual rasteira do mercado da arte. 

A obra “Manifesto Transpofágico” não é pedagógica. Aqui a questão pode parecer mais espinhosa pelo tanto de vezes que ouvi/li nomearem a obra por esse viés. Primeiro que penso haver, no senso comum, o entendimento de que toda forma de mudança ou repetição é aprendizagem. E junto a isso, de que toda enunciação explicativa é pedagógica (ou didática). É verdade que as palavras escapam a si mesmas e de que esse próprio texto crítico pretende chegar a essa constatação das ausências presentes no campo linguístico verbal; mas, para defender esse ponto, preciso sugerir que o uso das palavras aprendizagem, pedagogia e didática sejam pensadas dentro de um campo de articulação metodológica em torno da transformação dos sujeitos para um ideal de comunidade. Atenção à parte da “articulação metodológica” - estudo dos procedimentos e efeitos. Quando a encenação, portanto, se inverte e ilumina o público para que Renata possa sair de puro objeto visto para sujeito vidente, o que nomeiam como pedagógico é uma sequência de perguntas direcionadas ao público sobre conceitos e escolhas em um extenso teste sobre identidade de gênero. Sendo que ali, instaura-se um clima de desconforto semelhante às perguntas opressoras de sala de aula em escolas convencionais. Só que em Manifesto, o desconforto se faz em grande parte pelo receio da audiência em enunciar as palavras erradas, mas também se elabora pela autoridade que se constroi em torno da figura da transpóloga. De fato, a obra escancara a amplitude da ignorância em torno das questões sobre gênero, como quando pessoas cis não sabem o que são pessoas cis, quando joga com os efeitos sensoriais da violência verbal quando alguma enunciação transfóbica é feita mesmo quando o sujeito que fala nem se dê conta de seu ato de violência, e quando escancara o medo de alguns em direcionar para Renata a palavra com a qual ela mesma se reconhece e explicita em diversos momentos da peça. Mas, a obra não é pedagógica porque nem o teste e nem a correção das respostas são suficientes para elaborar uma transformação no sujeito e porque a tensão afetiva que se instaura serve muito mais para tornar evidente a ignorância. E para somar, é inegável que o erro do outro, em alguma medida, também é espetacularizado. 

Além disso, a obra instaura, explicitamente, um espaço de desconforto e constrangimento, o que, por si só, é um campo afetivo sem finalidade pedagógica. E isso não diminui em nada a inteligência cênica da obra, visto que a arte em si não tem obrigações com o campo da pedagogia e isso não pode ser tomado como um valor na análise crítica. Como se determinar a obra como pedagógica fosse algum tipo de elogio à ela - e como se reconhecê-la como desconfortável e constrangedora fosse uma ofensa ao espetáculo (estaria a arte sendo censurada de elaborar também esses afetos?). 

constrangimento (subs. masc): situação moralmente desconfortável.

E defendo esse ponto de vista para destacar a legitimidade do teatro como campo de confronto, de embate, e de abismo cênico; que escapa nossas expectativas de apaziguamento simbólico.

Por fim, acho curioso - senão bizarramente pretensioso - quando dizemos que o Manifesto está tentando “converter os convertidos”, pois isso pressupõe que estamos coincidindo a enunciação com a realidade, sem nenhum sinal de dúvida. Na apresentação realizada na programação do Junta Teresina, Renata perguntou a um dos homens presentes na plateia se ele namoraria com uma mulher trans, ao que ele pretensamente respondeu de forma negativa visto que ela não teria uma buceta. A enunciação do espectador é marcada pela atriz como transfóbica, o que de fato é. O que sucede daí como efeito na plateia é uma rejeição àquele homem, porque comumente interpretamos a equação homem = enunciado. A questão, para mim, portanto, está mais no efeito na plateia, da situação inversa - se o rapaz tivesse respondido de forma afirmativa à situação hipotética, isso o eximiria de ser transfóbico? A enunciação da resposta correta torna o indivíduo correto? Nesses casos, a resposta afirmativa finda gerando uma sensação de comunhão (vejam como somos todes desconstruídes ou ele está do lado de nós). Esse terreno pretensioso, arenoso e perigoso em que o público se afunda como agente social, é tensionado pela obra, quando as entrelinhas, os silêncios, os gaguejos, deixam explícitos que o medo está muito mais em ser julgado como transfóbico do que em instaurar uma situação opressora para uma mulher trans. Como o desejo político se articula, então, entre o alinhamento discursivo e uma transformação estrutural?

Nomear Manifesto Transpofágico como uma obra autobiográfica e pedagógica me parece ser uma maneira de evitar a própria materialidade da obra, a ambiguidade afetiva que ela instaura, a possibilidade de dialogar criticamente sobre seus procedimentos artísticos e a articulação das tensões como dramaturgia; do mesmo modo que o outro rapaz questionado na plateia enunciou centenas de outras palavras para se esquivar de nomear Renata Carvalho como uma travesti, não por receio de ofendê-la, mas por receio de ser publicamente ofendido caso cometesse um erro. Então, ao que me parece, alguns diálogos em torno da arte também vem se esquivando dos afetos concretos elaborados por uma obra ou ainda de tudo aquilo que não me conforta (porque a espetacularização do desconforto do outro-diferente-de-mim pode ser até almejada para que eu possa me auto-afirmar); a própria prática escrita da crítica de arte profissional (e aqui me incluo radicalmente nesse problema), por vezes, se estende penosamente para posicionar as palavras corretas, em um exercício duvidoso de resolução dos infernos sociais com a enunciação dos verbos. E a gente sabe que isso diz pouco sobre o inferno, mas diz muito sobre os daimons que o habitam.

 

Nota Adicional da Autora (Crítica da Crítica)

Teresina, 19 de outubro de 2024.

Decidi adicionar esta nota após assistir ao Buchada II - Transpofágica! com Renata Carvalho, ação de diálogo aberto que integrou a programação do Junta Festival e que me permitiu tomar anotações e reelaborar uma questão que apresento nesse texto crítico. Defendi no texto, a ideia de que o Manifesto Transpofágico não é pedagógico. Admito que já considerava a fragilidade dessa frase; havia comentado com Alana Falcão no quarto do hotel, que dava para desconstruir minha afirmação em um parágrafo (mas que eu deixaria essa tarefa para algum leitor ou leitora instigade). O que me inquietava era o quanto a obra me fazia pensar sobre o processo de aprendizagem a partir desse recurso da pergunta-resposta posta nas cenas de interatividade. Junto a isso, estava também buscando opor a pedagogia às sensações de desconforto e constrangimento que se instaurava entre as pessoas cisgêneras da plateia. Mas, durante a fala de Renata, percebo que o constraste entre a vocalidade da atriz para enunciar o seu texto, a postura de autoridade da transpóloga e os afetos que se constroem no público geram essa armadilha da "questão do pedagógico" (acho que essa é uma falsa questão, inclusive). Pois chego a conclusão que a questão é anterior a isso. O que a encenação faz, a partir do momento em que ela inverte a luz e a espacialidade para o público, é uma exposição da ignorância cisgênera (tanto que, uma das primeiras perguntas da atriz para o público é: "quem sabe o que é uma pessoa cisgênera?" e, ainda completa com a pista "se você não sabe, é porque, provavelmente, você é uma"). E o que essa exposição da ignorância revela é muito menos o campo da ingenuidade "daquele que ainda não sabe" e muito mais o campo da desonestidade "daquele que não se engaja em saber". É por esa razão que findei por arriscar a antipedagogia da obra (mesmo que duvidando de mim mesma) por notar que algo escapava nesse processo. Para além do fato de que o acontecimento cênico não possui (e nem deve possuir) tempo suficiente para elaboração de um processo de aprendizagem; é preciso, que haja compromisso e engajamento do sujeito aprendiz nesse percurso. E é, justamente, no mal estar da enunciação que se evidencia o movimento de desvio da cisgeneridade heteronormativa (e essa mesma das plateias dos teatros contemporâneos brasileiros) em aprender algo, primeiramente, sobre sua própria performance de gênero, preferindo manter a curiosidade agressiva sobre o outro do que enfrentar a dúvida sobre si e sobre sua suposta centralidade.

 

"Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, as pessoas se educam entre si, mediatizadas pelo mundo".

"Ninguém liberta ninguém, as pessoas se libertam em comunhão".

Paulo Freire.

 

 

Referências:

Leite, J. Autoescrituras performativas: do diário à cena. Dissertação de Mestrado. USP, 2014.


Foto do banner e da capa de Aril Cavotti e Victor Martins.

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