Por Lanuk Nagibson
23/11/2024
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
“A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é sua cicatriz, a lembrança de uma existência anterior.” (Mia Couto)
No palco, o escuro e o silêncio.
O silêncio e o escuro incomodam, constrangem e refletem na existência que coloca cada um diante de si mesmo a fim de pensar, descer aos vãos escuros da alma e pensar, evocar memórias e invocar lembranças.
Aos poucos uma luz central é delicadamente acesa e permite que o público veja o musicista — ao centro — diante de alguns instrumentos musicais, mais precisamente, uma percussão “desconstruída”. No canto esquerdo da plateia, surge André Morais, de costas, com uma roupa de cetim, entoando cânticos em dialetos de povos africanos.
A peça?
Começa.
A obra, que possui como base recortes de contos do autor moçambicano Mia Couto, foi apresentada na Casa da Ribeira, em Natal(RN), nos dias 19 e 20 de outubro. Trazendo um cenário composto por poucos objetos cênicos e a presença de apenas duas pessoas no palco, o multiartista paraibano dialoga sobre a temática do luto com a plateia por aproximadamente sessenta minutos. Apesar de se tratar de um monólogo, percebe-se — na peça — a existência de diversas personagens contando suas perspectivas em torno da temática trabalhada.
Com uma voz mansa, o ator inicia sua jornada pela dor do luto introduzindo um narrador, assim como ocorre em diversas obras do autor pelo qual ele se inspirou a fim de construir a dramaturgia. Em Mia Couto, encontra-se uma versatilidade na escrita, pois, em determinados textos, há uma prosa muito poética, em outros, a poesia não se presentifica em massa. Nos livros do moçambicano também não existe um padrão quanto ao tipo de narrador utilizado, podendo ser personagem, observador ou onisciente, embora seja um elemento que sempre encontra evidência nos textos de Couto.
Diante disso, compreende-se que em Memórias de terra e água, esse artifício também foi utilizado, pois o narrador está massivamente presente na peça, muitas vezes, mais do que as próprias personagens. Dialogando e explicando constantemente ao público o que está e será feito, a voz narrativa interrompe o fluxo proposto pelas vozes que partilham acerca de sua dor com a plateia, tornando — em diversos momentos — a narrativa lenta e o tempo dilatado.
À medida que a voz narrativa entrava em cena, um corte era feito na pouca linearidade que a dramaturgia propunha. Por vezes, a plateia estava concentrada escutando e compadecendo-se do lamento de alguma personagem e, de modo disruptivo, o narrador emudecia esse choro a fim de explicar o que estava sendo dito. Talvez um dos aspectos que mais fragiliza a experiência estética seja o ato do o autor, o próprio artista, esclarecendo o que está propondo, retirando a autonomia dos espectadores em pensar e criar suas próprias narrativas e impressões sobre o que foi visto. Esse artifício funciona como uma tentativa de unificar o pensamento do público a fim de garantir que todos estão compreendendo o que querem que seja entendido, contudo o que o espectador precisa (e quer, em alguns casos) é apenas se sentir perdido, afinal a não compreensão também faz parte da experiência estética. Por isso, senti como um “forçar de barra” ao perseverar na presença dessa voz intrusa que buscava garantir o total entendimento do que estava sendo proposto ali. Na literatura, o narrador é o fio condutor da história e sendo personagem, observador ou onisciente, ele escolhe como se mostrar ao leitor e o que contar. Narrar é um jogo em que o comprometimento se faz em garantir a companhia do leitor até o fim e manter o seu interesse pelo que está sendo contado. Com isso, entende-se que a finalidade do narrador em uma obra não é — e não deve ser — a unificação da interpretação nem a garantia total da compreensão acerca dela.
A partir da forma como a peça é divulgada: Memórias de terra e água - da obra de Mia Couto, pressupõe-se que, de algum modo, o autor africano e sua obra estejam, de forma evidente, presentes na produção, o que não ocorre. Como um leitor assíduo de Mia Couto, gastei energia e esforço mental, sem sucesso, tentando associar com qual ou quais obras a peça dialogava diretamente. Não saber quais os romances, contos ou poemas que foram utilizados para produzir a dramaturgia frustrou quem foi em busca de sentir, pelo menos o cheiro, de Mia na experiência teatral.
Por vezes, pensei que estivesse diante de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra ou de O mapeador de ausências, talvez alguns contos de Na berma de nenhuma estrada ou de O fio das miçangas, porém, nada, não dava para saber qual foi o fio de partida e condutor para a encarnação das palavras do ficcionista moçambicano. Uma maneira de tentar trazê-lo ao texto era soltando algumas frases com um alto teor poético, mas que soavam como categóricas demais para emocionar e sequestrar a atenção de quem as ouvia. Penso que, se houvesse a escolha por adaptar apenas uma obra de Mia Couto ou informar que contos foram usados como um recorte temático acerca do luto teria sido mais generoso e cativante com o público que foi em busca de ver a poeticidade do moçambicano sendo encenada. Logo, concebe-se que a presença do escritor moçambicano, no texto dramatúrgico, encontra-se no tom metafórico das palavras utilizadas e na poesia oriunda dos dialetos africanos cantados ao longo da peça.
Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, obra que fala direta e explicitamente do luto, o narrador-personagem — um garoto que perdeu o avô — diz: “Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo o poente como o desbotar do último sol. A voz antiga do meu avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá mais dia. [...] No Avô Mariano confirmo: morto nunca para de morrer.”, evidenciando essas vozes, relembro que, para além do narrador, a peça conta com a aparição de um menino, uma mulher, um lugar, um tempo e um rio que contam sobre as ausências que os habitam. Esse aspecto foi muito bem aproveitado pela direção. As características, por vezes animistas, da obra de Couto foram desfrutadas positivamente ao colocar os seres, além dos humanos, para falarem de sua perspectiva em torno da morte.
O multiartista André Morais, com um figurino simples e elegante, dançava pelo palco dando corpo a essas vozes que buscavam mapear e compreender a dor do vazio. A cada personagem, Morais ofertava um corpo; nenhum personagem tinha o corpo do outros; cada gesto foi pensado para diferenciar — por meio da anatomia humana — quem falava naquele momento. Era uma mão delicadamente contorcida, uma coluna envergada, os olhos esbugalhados ou a firmeza com a qual se plantava os pés no chão. E esse foi um dos pontos altos: a preparação corporal do ator que ofereceu seu corpo e nele permitiu que cada voz se presentificasse de modos distintos harmonizando com o figurino o qual, com poucas peças, transformava-se em muitos.
Abordar, em cena, uma temática como o luto de forma leve e poética ainda é um desafio, sendo assim é louvável dizer que a tentativa de mostrar a beleza na dor foi válida. Apesar das fragilidades que a produção, sobretudo o texto e sua execução em algumas partes apresentam, é importante dizer que a obra dramatúrgica fala sobre um tema que violenta a existência humana sem utilizar da violência, mas da poesia ofertada por Mia Couto. Compreende-se que, em nenhum momento, André Morais está buscando ou propondo realizar uma peça autobiográfica quanto a vida do ficcionista moçambicano, entretanto, como já dito, o que poderia ser melhor desenvolvido na peça, para que a experiência da recepção fosse mais proveitosa, seria trazer — explicitamente — a prosa poética do autor moçambicano para o palco, por meio do texto em si ou de elementos que permitisse ver claramente a voz do literato e seus traços estilísticos em Memórias de terra e água - da obra de Mia Couto.
“Você, meu filho, você disse certo: a morte é a cicatriz de uma ferida nunca havida, a lembrança de uma nossa já apagada existência.”
(Mia Couto em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra)