Por Heloísa Sousa
29/11/2024
Esse texto faz parte da cobertura crítica do Festival Recife do Teatro Nacional (PE), realizado entre os dias 21 de novembro e 01 de dezembro de 2024, que está sendo acompanhado criticamente pelo projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado. Fazem parte dessa cobertura es profissionais da crítica Heloísa Sousa (RN), Fredda Amorim (MG), Kil Abreu (SP) e Ivana Moura (PE). Outras críticas sobre esse mesmo festival podem ser acessadas nos sites do Cena Aberta e Satisfeita, Yolanda?.
Começo esse texto repetindo uma frase que tem me acompanhado na apreciação e reflexão crítica sobre o teatro: “a obra de arte é aquilo que nos faz duvidar da própria arte”. E quando posiciono a palavra “duvidar” nessa frase, não falo de uma desconfiança irritante que rejeita o enunciado antes mesmo de ouvi-lo, ao invés disso, esse verbo pertinente às indagações se apresenta tão genuíno quanto às perguntas repetidas pelas crianças em seus desejos por perceber o mundo. É como se a cada obra teatral, para além da fruição das narrativas, imagens e sonoridades, também pudéssemos nos perguntar: “mas, o que é isso mesmo?”.
O isso, aqui, é o teatro para a infância. Assistir um espetáculo infantil dentro da programação de um festival de teatro é sempre uma experiência que cobra uma atenção peculiar. Devido ao terreno movediço em que a obra se instaura, quando disputa sua condição de experiência estética ao lado de imaginários fortes como outras peças teatrais e comerciais estereotipadas além de todo o universo imagético e midiático das grandes indústrias internacionais do cinema de animação.
Dito isso, retorno à pergunta, sem me arriscar a respondê-las, mas com o intuito de retomar debates. O que significa um teatro para a infância? Qual a relação entre a experiência pedagógica e a experiência estética no teatro para a infância? Ao direcionar-se ao público infantil, resta ao teatro apenas a finalidade educativa? Toda a atividade direcionada à criança precisa ter uma finalidade educativa para fazer valer sua relevância? Quando nós, artistas da cena, tentamos educar as crianças através do teatro, estamos buscando educá-las para o quê e a partir de quais parâmetros? O que podemos aprender com as crianças? Como não permitir que o teatro retorne à posição catequizadora que outrora ocupou (e da qual ainda não se dissociou plenamente) nos tempos da colonização? Como preservar o direito da criança à experiência estética? O que significa, para a criança, uma experiência estética?
Penso nessas questões e em outras a mais a partir do espetáculo “Paraíso” (2019) do Teatro Máquina (CE), com direção de Fran Teixeira, e que também é a segunda obra teatral para a infância criada pelo grupo que já completou mais de vinte anos de trajetória e se consolidou com um dos grupos teatrais mais expressivos do país. Essas indagações fazem coro a própria descrição do grupo que compreende o “teatro como lugar de encontro, de risco, de crise, de desnorteamento e de invenção de realidades”. Somado a isso, a teatralização característica do grupo, com boas elaborações visuais e investigações narrativas, trazem apontamentos precisos e maduros em torno da experiência teatral para esse público específico. Em “Paraíso” conhecemos quatro figuras, uma mulher e três homens (Ana Luiza Rios, Fabiano Veríssimo, Levy Mota, Loreta Dialla e Márcio Medeiros), que se vestem com trajes astronáuticos de Isaac Bento e parecem ter aterrissado em um espaço-cenário estranho, perigoso e inóspito. Uma estrutura de ferro compõe, aos moldes construtivistas, uma sequência de passarelas por onde as figuras transitam e se instalam. A imaginação constroi um mar ao redor dessa estrutura e suas águas são tão curiosas quanto perigosas. As dúvidas seguem permeando todos que integram a experiência teatral, “o que é isso?”.
Ao longo da peça, a figura feminina parece comandar aquela missão e se comunicar com uma central, enquanto os demais coletam e investigam materiais aleatórios que pescam pelo caminho. A encenação borra o espaço adulto e futurista com o espaço lúdico de uma caixa de brinquedos de criança; ao ponto de não sabermos se as figuras atuantes são adultos em expedição ou crianças se divertindo - o que é notável quando observamos os eletrônicos de brinquedo operados pela comandante. Isso é um ponto destacável, pois a teatralização está muito mais próxima da magia e da brincadeira do que de muitas outras práticas representativas da vida adulta - o que nos faz pensar sobre o teatro, em alguma medida, como um tipo de “brincadeira de gente grande”, onde essa frase só mantém seu sentido se expandirmos o conceito de “brincadeira” para além da conotação pejorativa que forçamos para essa palavra.
Esse espaço inóspito, com cenografia de Narcélio Grud em parceria com o grupo, também possui sua vivacidade nas posições dos atores e da atriz em cena, compondo espacialmente a imagem que sustenta a principal fotografia da obra. O lugar remete ao planeta Terra no futuro, com um nível de poluição tão excedente que torna a vida insustentável - algo semelhante ao cenário distópico (e profundamente realista) desenhado pelo filme de animação “Wall-E” (2008) da Pixar. Essa é um dos pontos que me remete a sequência de questões que elaborei acima, os paralelos visuais reincidentes entre obras teatrais para a infância no Brasil e produções cinematográficas hollywoodianas, como se a indústria do cinema estivesse sempre adiantada em relação às proposições temáticas para esse público.
Foto de Darlene Andrade
A questão da sustentabilidade é uma demanda de urgência, com a iminência concreta do dito “fim do mundo”, ou “fim da humanidade” para ser mais precisa, a corrida contra as consequências do projeto de mundo que fomos forçados a viver traz à tona múltiplas reflexões sobre estratégias para “adiar” esse fato, sendo uma delas, o diálogo com a infância - embora as previsões nos indiquem que essa infância não terá muito a fazer até lá, pois este é um problema mais arraigado no presente do que no futuro. Tanto que outra obra infantil também apresentada na programação do Festival Recife do Teatro Nacional, o “Instinto” do Projeto Gompa (RS), traz para a cena o mesmo assunto. Fazendo eco a essa proposição, posso citar ainda o espetáculo “Sal - Menino Mar” do repertório ativo do Facetas, Mutretas e Outras Histórias (RN) e “O Estado do Mundo (Quando Acordas)” da companhia portuguesa Formiga Atómica, recém-apresentado na programação do MIRADA - Festival Iberoamericano de Artes Cênicas 2024, em Santos (SP).
Partindo desse panorama, penso: qual o espaço que proporcionamos para as crianças que centraliza a experiência estética e sensorial que não sirva às pedagogias diretas; que transformem as crianças em exploradoras natas como as figuras representadas em cena, ao invés de ensiná-las a se manter alertas sobre as responsabilidades em torno das nossas escolhas, enquanto adultos. Desconfio ainda do quanto projetamos para a criação a percepção de um cenário distópico que não é totalmente visível na realidade, pois é possível recortar as paisagens pelas quais transitamos e mostrar um planeta totalmente vivo e possível; além do fato de trazer para a dimensão das ações cotidianas e individuais, questões que dizem sobre um sistema econômico e macropolítico conduzido pelos grandes capitalistas. Afinal, uma criança pode tornar-se um adulto muito “bem educado” e que adere à coleta seletiva ao mesmo tempo em que se torna um empresário responsável por complexos sistemas de exploração humana e animal.
Mas, pensando a partir do modo de composição da dramaturgia da peça, há no Teatro Máquina uma escolha muito coerente ao apresentar uma narrativa que não se perde no excesso de explicações ou significados, muito menos em falas extensas, mas que permite que a história se constitua pelo encadeamento das ações das figuras - ou seja, uma obra que permite que a teatralidade haja por si. O que o grupo cearense nos oferece é uma composição teatral muito aguçada e coerente com a potencialidade teatral das artes da cena, e que nos mantém na questão em torno do teatro para a infância e seus desafios, ainda mais quando estamos localizados numa experiência limite de existência coletiva. O que pode o teatro diante do fim?
Fotos do Banner de Luiz Aureo
Ficha Técnica
Direção: Fran Teixeira Dramaturgia: Teatro Máquina Com Ana Luiza Rios, Fabiano Veríssimo, Levy Mota, Loreta Dialla e Márcio Medeiros Trilha sonora original: Fernando Catatau Pesquisa de efeitos sonoros e eletrônicos: Eduardo Quintana e Loreta Dialla Cenografia: Narcélio Grud e Teatro Máquina Colaboração na cenografia: Frederico Teixeira Figurinos: Isaac Bento e Teatro Máquina Pesquisa de Figurino: Isadora Gallas Desenho de Luz: Walter Façanha Fotos: Allan Diniz, Darnele Andrade e Luiz Alves