O que dura e permanece o mesmo

Por Amanda Bixo
22/12/2024

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Primeiro, blackout.

 

As luzes se acendem e o dançarino Marconi Araújo está na diagonal esquerda do palco, na boca de cena, segurando uma pedra de paralelepípedo sobre a cabeça.

 

Como prólogo, uma pedra grita tão alto quanto uma trombeta, imaginei que estava prestes a assistir algo com a consistência daquela pedra.

 

Ao deixar cair a pedra no chão, um novo blackout. 

 

Esta coreografia da luz, criada e operada pelo potiguar Vinicius Fortunato, persistiu durante a apresentação de “Feche os olhos”, novo espetáculo da companhia Giradança (RN),  fruto de alguns meses de residência artística com a coreógrafa Beatriz Sano (SP) e o coreógrafo Eduardo Fukushima (SP). A obra estreou na Casa da Ribeira nos dias 10, 11 e 12 de outubro de 2024, integrando a lista de estreias em dança que aconteceram na cidade de Natal até este momento. 

Quando a luz se acende novamente, estão todes no mesmo lugar antes ocupado por Marconi e a pedra, engatinhando lentamente para dentro do palco e se espalhando de forma difusa, dilatando o espaço. Vestem roupas casuais em vermelho, preto, branco e tons terrosos, deitam no chão e ficam assim por um tempo. Devagar, iniciam um gesto com as mãos, variando a matriz de cruzá-las à frente do rosto, cada ume em sua pira. Os corpos têm uma qualidade flutuante, parecem ter o peso de uma bola de ar, e os olhos ficam quase sempre voltados para dentro. 

Percebi o rastro deste gesto e desta corporeidade nos pequenos trechos que eu pude ver em vídeos de outros trabalhos da dupla de coreógrafes, como em “O que mancha” (2021), “Horizonte” (2023) e “Horizonte+” (2024). Beatriz Sano e Eduardo Fukushima são nipobrasileiros e vêm de alguns anos de pesquisa com técnicas corporais asiáticas, chinesas e japonesas, o que me faz pensar que há uma corporeidade que vem sendo investigada/criada de forma contínua pela dupla, fora da curva eurocêntrica. Na crítica “Saber-não-saber-dançar” (2024) de Heloísa Sousa, ela aponta para algo parecido sobre o trabalho de outro artista da dança que cria fora dessa curva, Alexandre Américo, quando observa que há uma relação intrínseca entre todas as obras dele, e que esse jeito de pesquisar em dança pode ter a força de alargar as suas fronteiras, de expandir os modos de acontecer e revelar outras paisagens para a dança contemporânea brasileira.

Em sua coreografia de acender e apagar, a luz “fecha os olhos” e nos induz a fechar os nossos também, como se aqui a passagem do tempo fosse esse gesto lento de abrir e fechar os olhos. Tomei-o como um modo de observar a peça, sempre que a luz apagava, eu a acompanhava e tentava permanecer um tempo assim, querendo entender o que este movimento poderia causar no meu corpo e me dizer sobre aquela dança. O que eu via de olhos fechados era escuridão, quando abria, impaciente, geralmente ainda estava escuro, dentro e fora se borravam. Também prestei mais atenção ao som, criado pelo músico Chico Leibholz (SP) e Fukushima especialmente para a peça, que se desdobrava infinitamente em um jazz e, de vez em quando, percorria um caminho de águas, ventos e pedras. Ele era embalador. Deste lugar, pensei que aquela era uma dança dilatada.

 

 Dilatação, na física, é o aumento de volume dos corpos com o efeito do calor, sem que haja mudança na constituição e quantidade da matéria.

Na língua portuguesa, dilatação também pode ter sentido de ampliação ou prolongação. 

 

Será que eu percebi o aumento de volume dos corpos na obra? 

Ou, na verdade, o que observei foi uma prolongação?

 

A luz e o som são dois aspectos muito fortes na peça. O que estou tentando perceber é qual relação de corporeidade foi construída com estes aspectos. Mas, o que vejo é que os corpos construíram uma relação, sobretudo, com o tempo. Todos eles. Luz, som, pedra e dançarines se dão ao tempo. Então, o que estamos observando, é uma duração. Os corpos duram no tempo da obra insistindo em um único gesto. O fluxo de dança não desvia o percurso, não propõe metamorfose, ele segue por uma vibração que em poucos momentos se intensifica e varia. 

Mais ou menos na metade da peça, um outro blackout acontece e Marconi surge novamente com a pedra sobre a cabeça, dessa vez todes estão parados como  “estátuas”, espalhades pelo palco e eu noto que entrou uma nova dançarina na cena - penso: o que ela vai propor aqui que já não tenha sido proposto pelo grupo? - a pedra cai outra vez no chão e todes se movem, agora rapidamente, atravessando o palco. 

Neste momento, eu me dei conta que a aparição da pedra poderia ser uma marcador de cena, e entendo que existem dois momentos na obra. Depois dessa segunda aparição, outras dinâmicas de cena acontecem com variações em cima da base (gesto de cruzar as mãos à frente do rosto). No entanto, não nos parece que houve transformação na vibração de movimento da base até estas novas dinâmicas acontecerem, o que parece é que houve uma colagem entre o que estou chamando de primeiro e segundo momento da peça. A dançarina que entrou depois também não sugeriu uma nova vibração, alterou a constituição do grupo, mas não gerou deslocamento. É basicamente o oposto da dilatação, e também o oposto do que diz Alana Falcão sobre a “Dança Monstro” da Cia. dos Pés (PI), em “COMEÇAR NU NÃO É COMEÇAR DO ZERO, É COMEÇAR DO ZERO E DO UM” (2024), quando escreve quemesmo versus mesmo será sempre produtor de uma coisa nova”, porque lá o que importa, nas palavras dela, é a qualidade metamórfica do processo; mas aqui a questão que se mostra parece ser uma dança durando no tempo ou o tempo durando numa dança, não necessariamente a transformação da coisa na duração. Então, por que criar outras coreografias, além deste experimento, que observamos no primeiro momento da peça? Por que não insistir na duração simplesmente? 

“Feche os olhos” teve um disparador criativo, o livro “Favor fechar os olhos: Em busca de um outro tempo” (2021) do filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han. É interessante porque, no pouco que li na sinopse do livro, ele defende a ideia de que o mundo perde algo de sua duração, uma vez que o presente se reduz à ponta da atualidade; isto vai de encontro como uma flecha à corporeidade que observamos no trabalho, percebemos de fato uma tentativa de resgatar a duração do tempo na interação entre os corpos (dançarines, luz, som e pedra). Para isto acontecer é preciso um trabalho de dramaturgia muito afiado para aproximar a filosofia da criação de uma corporeidade sem que haja um jogo de representação desta ideia. Outra coisa que me chamou a atenção foi a ousadia pelo pouco - por uma coisa que Alexandre Américo vem chamando de “pequenas danças”. Foram poucos gestos, poucas variações, poucos elementos cenográficos, não houve clímax. É bonito ver uma dança pequena acontecer ante a avalanche tecnicista que a dança ainda quer servir. 

Eu estive o tempo todo fofocando com as críticas de Heloísa Sousa e Alana Falcão durante esta escrita, o que acabou sendo um modo de reassistir a peça. Acho que é isto que acontece na troca de ideias pós experiência artística, a gente reperforma o acontecimento de alguma maneira. Destas conversas, percebo que algumas coisas não se resolveram (e ainda bem que não) sobre a diferença entre permanecer o mesmo e transformar. Digo, o que dura pode permanecer o mesmo? Os corpos na duração do tempo sempre terão uma qualidade metamórfica? O que dura e permanece o mesmo, gera deslocamento?

 

Ficha Técnica

Direção, concepção e coreografia: Beatriz Sano e Eduardo Fukushima

Direção Artística: Ana Vieira e Álvaro Dantas

Criação e Dança: Ana Vieira, Álvaro Dantas, Angélica Oliveira, Jô Soar, Jânia Santos, Marconi Araújo, Thaíse Galvão e Wilson Macário

Composição Musical: Chico Leibholz e Eduardo Fukushima

Direção geral e produção: Celso Filho

Ensaiadora: Thaise Galvão

Design e operação de luz: Vinicius Fortunato 

Operação de som: Anderson Galdino (Nando)

Foto: André Rosa, Bruno Martins e Cynthia Campos

Vídeo: André Rosa 

Designer gráfico: Yan Soa

Direção - Espaço Giradança: Roberto Morais 

Direção financeira: Cecília Amaral

Produção geral: Listo! Produções Artística

 

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