Por Alexandre Américo | TORTA Plataforma de Arte Expandida
24/12/2024
Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
CHÃO, Cia de Dança do Teatro Alberto Maranhão (RN). Fotografia de Mariana Granja.
Para dar continuidade à elaboração estética adjacente à apreciação das peças que me entalham a carne, escrevo este texto. Desta vez, situado nas apresentações que ocorreram no Teatro Experimental de Arte (TEA), dentro da Mostra Argemiro Pascoal, compondo a programação do FETEAG - 2024. De 17 a 29 setembro de 2024, dividido em duas etapas, a primeira de 17 a 20 em Recife, e a segunda de 21 a 29 em Caruaru-PE, ambas em Pernambuco, pude acompanhar, quase que inteiramente, o recorte curatorial do Festival que apresentou duas obras cênicas por noite e em teatros distintos. Aliás, que teatro fabuloso esse tal de TEA!
Neste evento para além da mediação de SAL, Residência de Pesquisa e Criação (projeto de formação artística mediado por Alexandre Américo, Pedro Vitor e TINOC, para artistas locais, com duração de cinco dias e uma apresentação processual - 28.09 -), também dancei GOLDFISH - 23.09 - e dirigi o CHÃO, da Cia de Dança do Teatro Alberto Maranhão - 24.09 -.
De domingo a sábado, pude testemunhar, no TEA, peças que, de outra maneira, não poderia, visto a cidade conservadora que resido (Natal-RN). Obviamente não falo das plateias, que estão ávidas à derrocada da cafonalha natalense, mas dos “donos” das instituições, àquelas “mãos invisíveis” que temem o que o papangu-curadoria pode fazer à família nuclear-tradicional-agalegada da capital potiguar. Pois bem, neste curta duração pude compartilhar o mesmo espaço-tempo de MONGA, de Jéssica Teixeira (CE); VAMOS PRA COSTA? do Núcleo da Tribo (BA); DANÇA MONSTRO , da Cia dos Pés (AL) e ANCÉS, de Tieta Macau (PI/MA/CE).
TESTEMUNHAÇÃO: a consumação das obras.
SAL: como durar no tempo, TORTA Plataforma de Arte Expandida (RN-PE). Fotografia de Mariana Granja.
E, destas experiências estéticas (Dewey, 2010), que nada tinham de seguras e estáveis, elaboro o presente texto, mas não sem deixar de tecer um elogio ao papangu-curadoria que fez deslocar, historicamente, as plateias que comungaram do piso comum (Ranciére, 2021) do Teatro Experimental de Arte Lycio Neves (TEA). Aqui, quero acentuar a beleza vital desta prática curatorial que pareceu orientada aos corpos dissidentes e seus jeitos de ser/estar; ali, justo na necessidade da criação de espaços à testemunhação do fazer-dizer (Setenta, 2008) daqueles que escapam às pressões esmagadoras da normatividade hetero-cis-branca e bípede compulsória (Carmo, 2023). Para tanto, desloco a beleza à compreensão afroconfluente que a percebe enquanto qualidade intrinsecamente ligada ao cultivo do axé gestado na prática vital do comum, ou seja, só nos parece belo aquilo que serve à comunidade e, neste caso, à experiência corporal de pessoas historicamente discriminadas por manifestarem suas próprias singularidades.
Porque, “ninguém negará que o reconhecimento do Outro como seu semelhante ou como um igual sempre foi um problema; renegar o Outro é de certa forma afirmar a própria identidade a partir dessa negação” (Nogueira, 2023). Portanto, a necessidade de uma prática curatorial orientada ao “diferente”, como a que, felizmente, ocorreu nesta edição do FETEAG, pelo olhar farejador de Fábio Pascoal e Marianne Cosentino. Pois, ela parece clinicar (Dilacerda, 2023) em direção à construção de mundos onde o “outro” não venha estigmatizado como ameaça ou “perigo que deve ser exterminado” (Carvalho, 1997), mas apontando a beleza dos “diferentes modos de existência” (Souriau, 2021).
OUTROS JEITOS-DE-FAZER
GOLDFISH, Alexandre Américo (RN). Fotografia de Mariana Granja.
Para seguir, compartilho uma pergunta que emergiu no corpo após a consumação das apreciações. Trago-a como um tipo de dramaturgia silenciosa (Caldas, Gadelha, 2016), um fundamento sob a terra, um jeito de matizar, num só texto, as múltiplas instâncias manifestadas desde as obras anteriormente nomeadas.
QUAIS MODOS DE VIDA?
àqueles que gozam da diversidade dos jeitos de ser/fazer e existem em contraposição à ÚNICA FORMA DE VIVER DA MONOCULTURA (Santos, 2023).
MONGA, obra criada e encenada pela artista DEF Jéssica Teixeira, chega sem pedir licença. Continuidade de sua pesquisa solística anterior, E.L.A (2019), esta peça convoca a presença da multiartista Júlia Pastrana (1834-1860), para refazer, criticamente e desde a perspectiva do “estranhamento”, a perversa prática dos freak shows, ou show de aberrações.
MONGA, Jéssica Teixeira (CE-SP). Fotografia de Mariana Granja.
Adentro o espaço, estou em um programa de auditório. Quase me sinto confortável, se não fossem duas coisas: a primeira, os estímulos típicos da cultura de shows, vindos de todas as direções que transformara o espaço teatral, com cadeiras dispostas em semi-arena, no capenga circo do “Palhaço Bulachinha” que se instalava, anualmente, na comunidade da Praia de Pirangi do Sul, no Litoral de Nísia Floresta - RN, lugar de minha infância. E, segundo, a presença mascarada da multiartista e performer da peça, Jéssica Teixeira, que nos recepciona, desnuda, oferecendo-nos cachaça.
Um corpo de máscara, sem máscara, de pelos, sem pelos.
Durante uma hora, Jéssica espelha nosso olhar sobre seu corpo e as narrativas que ele carrega enquanto ser social. Ela elabora, como uma show woman, uma alquimia das presenças, entre aquelas encarnadas ou/e não, a fim de gestar a perturbadora consciência das inúmeras violações capacitistas infligidas a corpos com deficiência desde a imagem da mexicana Julia Pastrana .
MONGA parece nos fazer tremer, não de fora para dentro, mas do passado ao futuro. Pois, tocar a Monga é desfazer seu mito na bruteza de nossa própria realidade, convocando-nos a interromper o gérmen do capacitismo (Américo, Queiroz, 2023) que orienta nossa construção capitalística no mundo.
Da cidade de Itacaré, três pescadores-dançarinos instauram o VAMOS PRA COSTA?. Com criação e direção artística de Verusya Correia, criação e performance de Arionilson Xixito, Pitche e Valmilson Pericles Nascimento, além da iluminação de Márcio Nonato, esta peça coreográfica nos convida ao tempo dos peixes e às histórias que a pesca artesanal, nesta praia, pode cultivar.
Sentei na primeira fila e inclinei-me aos três caiçaras que esperavam. O cardume-plateia sentou-se. Vamos pra pesca. O trabalho começa aqui ou a espera e a observância daqueles homens já eram parte do que poderíamos convencionar de dança?
Pois sim, nesta dança, esses corpos caiçara jogam a rede em direção a essência da Dança, capturando-a. E, bem como o meu pai, homem indígena, pescador, a trata, descamando-a, tirando seu bucho, escolhendo que partes servem para alimentar a nossa família e a comunidade circundante ou que partes precisam tornar-se alimento de outros animais, que partes desse peixe-dança devemos devorar e, finalmente, que histórias sobre os peixes necessitamos re-contar para inventar outros jeitos de estar (nas danças).
E eu, preto, raspado para Omolú (aquele abanado no mangue), com odú regido pela dona de todos os oris, Iemanjá Ogunté, não poderia deixar de me conectar desde o campo estético da ancestralidade. Aqui, a relação de fruição criada era a de parentesco preto e caiçara.
Senti, reconheci e chorei.
Com uma coreografia extremamente refinada e orientada aos jeitos de ser desses pescadores, bem como uma luz inesquecível que nos conduzia à experiência estética dos momentos de suas pescas, essa dança me ensina, em seu volteios, capoeiragens e ecos de quilombo, um jeito de respeitar outros jeitos de ser. Pois vida de pescador é assim mesmo: “dia de poucos, dia de muitos”.
DANÇA MONSTRO , uma coreografia de Cia dos Pés (AL), com concepção e direção de Telma César e performance de Joelma Ferreira, Magnum Angelo e Regis Oliveira, é uma daquelas peças que compreende o corpo e seus jogo sinuosos como um campo de encruzilhada, ora cultural ora natural, por vezes material, por vezes imaterial, mas nunca frio, reto ou estagnado.
DANÇA MONSTRO, Cia dos Pés (AL). Fotografia de Mariana Granja.
Um corpo de vibração.
Antes de meus olhos, o meu umbigo. Esta peça me captura por baixo. Me devolve às manifestações da terra. Me despossui o corpo social. Me seduz feito gira de cabocla.
No corpo tudo se dá e vibrando com as três danças que ali se manifestaram circularmente, pude viajar no percurso histórico da própria ideia de corpo. Era como se, em 55min, a terra revelasse a conformação do animal humano (Maffesoli, 2021). Justo numa dança, o monstro.
Caçadores coletores, correm, dançam, seduzem, suam, amam, odeiam. Aqui, algo antes das performances sociais das vestes. O tempo é espiralar, vai para frente e para trás , sobe e desce. Retorna, mas sempre diferente.
Um banho vermelho. Estamos, todos, sob uma luz que tinge tudo com a cor de urucum. Os animais humanos, com olhos que miram o chão prenhes de vocábulos ancestrais, situando a violência no corpo.
Violência, festança, contemporâneo, ancestral.
O nosso umbigo é cortado,
somos órfãos.
Tieta Macau (PI/MA/CE), devora o tempo. Uma dança assentada à Iroko, fundamentada em parâmetros ancestrais quanto a sua relação com a duração das coisas. Este é ANCÉS, èro!
ANCÉS, Tieta Macau (PI/MA/CE). Fotografia de Mariana Granja.
A macumbaria (Abel in Greiner, Souza, Faro, 2022) instaurada por Tieta abre espaço no campo revolucionário da dança enquanto educação (Porpino, 2006). Ele elabora, bem como fazemos no terreiro, um espaço de ativação ancestral articulando saberes orais, estéticos, éticos, musicais, espirituais e políticos desde o corpo como encruzilhada (Rufino, 2021).
Aqui, Macau performa com uma tecnologia afinadíssima, que só quem é do santo sabe, fabulações (Greiner, 2017) situadas na negrura do corpo. Véio, Curandeiro, Cobra, Mineral, Animal: o jeito do ancestre.
E com esse tal “jeito”, ele capoeira com a gente. Nos move, nos põe a cantar e dançar. Como um artista-educador que é, desvia o espaço teatral à educação. Que educação? àquela que só é possível na exaustão de nossos colonizados “jeitos” de ser. Tieta não sabe, não ensina, mas abre espaço, cria “circunstâncias” (Deligny, 2018) à vida.
E com amorosidade, ele abre a roda, a sasa, ao infinito de nossos “jeitos de ser”.
Mopudé.
Referências Bibliográficas
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