Por Heloísa Sousa
05/01/2025
Esse texto faz parte da cobertura crítica da décima edição do Junta Festival - Dança e Contemporaneidade, realizado em Teresina (PI) entre os dias 15 e 20 de outubro de 2024. O texto é atravessado por discussões com Alana Falcão (Revista Barril, BA), que vem acompanhando o festival como crítica de arte junto da autora desse texto. Para ler o texto crítico de Alana Falcão que também cita essa mesma obra, clique aqui.
Em tempos de um mercado da arte cada vez mais sedento por novas estreias, em uma apelação neoliberal pela novidade, que cobra dos artistas um nível de produtividade totalmente incoerente com a disponibilidade de tempo e estrutura para maturação das investigações artísticas; presenciar um gesto curatorial que reposiciona sua mirada para obras com mais de dez anos de existência chega a parecer vanguardista. Se a manifestação vanguardista se baseou na novidade como categoria estética e na ruptura com a tradição, como elucida Peter Bürger em sua análise da teoria da vanguarda, a captura dessas atitudes pelo mercado da arte, faz ruir o projeto de vanguarda em si. Se a novidade passa a ser aceita como norma e institucionalizada como moda, ela perde sua potência de desestabilização do próprio sistema e revisão crítica dos procedimentos e obras artísticas legitimadas. Nesse sentido, olhar para obras artísticas estreadas anos atrás soa como um contragolpe muito interessante de ser observado.
“Como superar o grande cansaço?” é uma obra coreográfica de Eduardo Fukushima (SP) estreada em 2010 e que possui uma relação direta com o repertório do artista e com suas investigações em torno do corpo em dança e de uma criação minimalista. As artes da cena, como artes vivas, promovem outra experiência estética ao reapresentar um espetáculo estreado há catorze anos, pois a própria presença dos corpos, dos contextos e dos discursos em tempo real atualizam a concepção inicial da obra. Seguindo uma proposição minimalista já característica das obras de Fukushima que opta para uma síntese das formas e cores na imagem cênica, tendo seu desenho baseado em uma extensa metragem de linóleo branco e um corpo que dança com vestes escuras e modelagem simples como as usadas em salas de ensaio; Fukushima dança movimentos que se repetem e materializam alguma exaustão pela própria reincidência. Ele começa como um Sísifo, em um movimento quase “idiota” de autoflagelação, que já se inicia no insuportável e derrete. O sujeito não se mantém.
Mas, ainda assim, tenta, se levanta, se reposiciona e faz novamente. As ações de repetição parecem um vocabulário que ele vai dançando com algum improviso. Mas, sendo sempre os mesmos movimentos, embora seja uma repetição que não dança a representação da rotina. Os movimentos em si derretem, escorrem pelo corpo e pelo espaço, remetem a alguma funcionalidade profissional ou estratégias de sobrevivência e se suportam sobre os braços do artista até ele pausar. São os desenhos desses intervalos como parte da coreografia que tornam o percurso dançado suportável. A pausa, aqui, ganha conotação dúbia entre a insuportabilidade e o intervalo. A pausa então denota o limite ou permite que ele se estenda? Ao final, ele se retira. Ele foi até onde dava. Inevitável não lembrar das análises teóricas de Theodor Adorno sobre o tempo livre e a captura do ócio pelo sistema capitalista para somar aos tratados filosóficos mais recentes de Byung Chul-Han que foram tomadas como referência pelo próprio artista.
O título da obra é uma pergunta e isso não pode passar despercebido, pois reitera que o artista dança uma dúvida e não um manual de instruções. A escolha por adjetivar o cansaço como grande também se materializa na extensão do palco branco percorrido quase em sua inteireza por Fukushima. A relação com o cansaço é também espacial.
O que espanta nessa obra de Fukushima é sua absurda atualidade. Mesmo com uma distância temporal de mais de uma década entre sua estreia e a apresentação assistida na programação do Junta Festival neste ano de 2024, o artista parece dançar algo que só se verticaliza ainda mais na nossa realidade. Arrisco dizer que, não apenas o desejo por dançar algo desse cansaço, mas também a sua forma em dança faz com que Fukushima tenha criado um clássico da dança contemporânea brasileira. Uma obra artística que consegue dizer sobre uma recorte temporal que é essa contemporaneidade globalizada e capitalista que se esquematiza de modo semelhante à cena icônica de Charles Chaplin em “Tempos Modernos” (1936), mas dessa vez sem as máquinas ou as divisões em séries; pois, para dançar esses tempos contemporâneos basta a automatização “independente” dos corpos trabalhadores e a observação vigilante de sua própria classe.
Ou seja, ao invés de parecer uma obra datada ou apegada a características formais e/ou discursivas de um outro tempo - mesmo que esse tempo seja apenas dez anos atrás, lembremos que nossa relação temporal tem estado cada vez mais acelerada e que os anos parecem representar abismos geracionais cada vez maiores -, a obra parece radicalmente contemporânea. Não apenas porque a condição de exaustão funda a lógica de exploração capitalista desde os tempos da revolução industrial; mas porque a abstração e a simplicidade imagética operada por Fukushima cria uma dança que sintetiza as pulsões do corpo e uma paisagem conceitual imanente.
Preciso dizer também sobre o quanto o trabalho de Fukushima antes me parecia incoerente. Assistindo obras como “O Homem Torto” (2013) e “O que mancha” (2021) eu tinha a sensação de que não havia nada a ser percebido ali; a simplicidade da cena me remetia ao ponto inicial da sala de ensaio onde tudo está em devir e diante dessa paisagem parecia que não havia nada ali a ser visto. Eu não sabia para onde olhar, e ultimamente tenho pensado bastante na dança como uma cena que exige do público novos modos de observação, uma recalibragem da retina, um reposicionamento do globo ocular - e falo disso em uma dimensão física, brincar com as direções e os des(focos) do olhar. O tanto que se falava do trabalho artístico de Fukushima me dava a certeza de que tinha algo que eu não estava vendo.
Eis que decido citá-lo em uma aula de dança para alunos do ensino fundamental, em uma escola particular em Parnamirim (RN). Decido apresentar o vídeo de um portfólio que apresenta as criações dele em parceria com a artista Beatriz Sano (SP) - a mesma dupla que dirigiu o mais recente trabalho da Cia. Giradança (RN) e ali, com os detalhes da câmera, com os diferentes planos e a possibilidade de repetição do vídeo, algo se deu na minha percepção. Primeiro ponto é é o distanciamento da espetacularidade - algo que parece tão viciado nas teatralidades que pode ser um dos pontos que faça com que alguns artistas e espectadores de teatro tenham dificuldades com a apreciação da cena em dança. O o outro ponto é que notei que o trabalho do Fukushima apresentava mais sentidos quando eu enxergava o corpo como espaço, e o movimento como um circuito dentro desse corpo; quando meu olhar escapava demais e buscava toda a amplitude da caixa cênica, a coisa se esvaziava de maneira tremenda.
Acho interessante destacar como a questão do tempo parece ter permeado minha experiência de acompanhamento desse festival, como um ponto de discussão latente. O modo como o tempo atravessa os processos criativos e as dinâmicas do mercado em arte apareceram insistentemente em conversas informais com a crítica de arte Alana Falcão (BA) e ainda na fala sobre produção cultural de Gabi Gonçalves, gestora da Corpo Rastreado (SP). Debater sobre o tempo como demanda, como recurso imaterial mas concreto de produção (para além de demandas muito concretas e materiais como o espaço, os corpos e o dinheiro), dançar o tempo e curar obras desafiando o tempo como valor de mercado. Talvez a pista seja sobre insistir no desvio da imediaticidade - sobreviver é urgente, criar é fundamental, estrear não. As estreias possuem seu próprio tempo, elas são inerentes, mas não se deve condicionar a existência do artista ao ponto do aplauso. Isso não quer dizer uma recusa aos momentos de encontro entre o artista e a plateia, as estreias acontecem (da ordem do acontecimento) como ponto inevitável de um trajeto, mas não como perseguição desenfreada ou estruturação sublime dos sentidos. Adentrar às salas de ensaio, talvez? Documentar processos? Redirecionar o olhar para observar os trajetos talvez sejam pistas consistentes que fazem eco ao gesto curatorial marcante desta edição do Junta.