Dançar com o Invisível

Por Heloísa Sousa
06/02/2025

Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

 

Dizer que o movimento pode ser a síntese da dança é um problema. E quando uso a palavra problema neste texto, não atribuo a ela um sentido negativo, ao contrário, a compreendo como algo que compõe alguma ontologia da arte. A associação, ou até equivalência, entre as palavras movimento e dança me parecem de uma ordem semelhante às associação, ou até equivalências, entre as palavras som e música. A questão interessante aqui é perceber como a arte consegue ir alargando esses limites do conceito de cada palavra a partir da própria prática, ao ponto de incluir dentro dessa mesma nuvem seu dito “oposto”. Dessa forma, artistas conseguem evidenciar como o silêncio pode ser som e como a imobilidade também pode ser movimento.

E é ainda nessas encruzilhadas entre mover-se e seguir movendo, ou então parar, ou talvez apenas agir, e deixar-se guiar pelos sons ou deixar que os sons apenas existam, mover-se de forma autônoma, não se mover de novo, que uma parte de alguma história da dança acontece, como o pesquisador norte-americano André Lepecki desenvolve tão sagazmente em seu livro que carrega o título-procedimento de exaurir a dança. E toda a vez que eu vejo uma obra em dança, esses enfrentamentos conceituais voltam na minha memória.

Neste início do ano de 2025, fui convidada pelo artista Leonardo França (BA) a assistir sua obra em dança mais recente, ainda nem estreada, e intitulada “Beira”. Assistir uma obra que ainda nem estreou me chega como uma experiência incomum e fantástica. França decide dançar sua obra para gerar um registro audiovisual; mas, ao contrário das convencionais filmagens de obras cênicas em plano aberto e câmera parada, ele permite que haja uma composição sutil e viva nessa interação. Surge uma outra obra (audiovisual) a partir de uma obra (em dança), mas em um tipo de diálogo que busca manter as duas coisas muito próximas. Isso torna a experiência cênica praticamente possível através do audiovisual.

Frame da filmagem de "Beira" de Leonardo frança (BA), 2025.

Eu sei que, até esse ponto do texto, várias pessoas já devem estar se corroendo com as aproximações que faço entre dança e movimento, cena e audiovisual; assumindo-os como acordos impossíveis. Mas, sugiro que sigamos com esse problema, sem nenhuma pretensão de resolvê-los aqui.

Isso porque “Beira” também parece uma obra que propõe um diálogo [im]possível, que seria o mesmo que dizer que ela sugere um diálogo que está fora do campo de possibilidades que conhecemos. Há vários outros campos. França, então, dança a partir da morte de seu pai. 

Não é incomum que artistas elaborem lutos na arte, sejam lutos de ordem pessoal, sejam lutos coletivos. Lutos que podem ser narrativos, legitimadores, celebrativos, indignados - a depender da lida do artista com essa questão. O importante talvez seja notar que o luto não resolve coisa alguma, mas sim é um processo de enfrentamento com a coisa. Isso que França nomeia de mistério. Não o fim ou a morte, mas algo por vir do qual esperamos, mas sabemos tão pouco.

Eis que essa dança parece existir para encontrar nesse limite - que ele nomeia como beira - essas duas formas distintas de existência, entre aqueles que estão vivos e visíveis e aqueles que estão vivos e invisíveis, para usar as palavras do próprio artista. Assim, “Beira”:

não narra uma vida “que se foi” - porque assume que ela ainda está [e está, inclusive, materializada geneticamente, na presença em cena d/o filho - o pai - o avô]; 

não atesta uma pessoa que desconheço, não me dá rosto nem nome nem contorno, e por isso me permite encontrar outros invisíveis;

não celebra o fim, pois nem reconhece a existência deste fim;

nem se indigna com a beira, apenas se coloca diante dela.

 

O que a obra instaura é um ponto de encontro - na beira - entre esses corpos de materialidades distintas. Não me parece à toa que a relação com a música seja assumida em profunda simbiose com os movimentos - se a dança se submeteu muito à música, aqui são os movimentos que escrevem os sons. Talvez isso seja ainda mais radical na experiência de assistir ao registro audiovisual da obra, pois ao soprar as conchas ou mesmo mover-se, os sons ecoam de uma forma que suas fontes tornam-se indistinguíveis, ou ainda produzem sons que nos surpreendem ao nos fazer lembrar que aquilo é possível [autorizado?] como quando o instrumentista Paulo Pitta sopra no seu saxofone. Ao não reconhecer de onde se origina aquela sonoridade, enquanto ela acontece milésimos de segundos após o movimento, a experiência de mistério se efetiva, como se ondas eletromagnéticas estivessem sendo produzidas pelo dançar tal qual um teremim. 

O instrumentista Paulo Pitta tocando na peça "Beira" (BA), 2025.

A assunção da imaterialidade do som - e da música - é um apontamento interessante nas obras artísticas, pois é o reconhecimento de sua natureza que nos faz acessar algumas aberturas sensoriais no próprio corpo. Assim, parece óbvio - e obviedade aqui, está muito longe da dimensão do clichê e mais próxima da manifestação de uma evidência - que precisaria ser a produção da imaterialidade pela dança que presentificaria a beira - apenas o imaterial dos sons para alcançar o imaterial dos fantasmas. Lembro então da obra artística e em constelação “Azul” do Programa Tercer Abstracto (Chile/Brasil) onde os artistas encontram na peça radiofônica a possibilidade de encenar a imaterialidade proposta por Yves Klein nas suas investigações artísticas. Coincidentemente, ou não, a relação com o pai já falecido do diretor chileno também atravessa diretamente esta última obra. 

Encontra-se e abre-se um canal, e através dele torna-se possível continuar falando, ou cantando. Esse som enunciado conseguiria ecoar além.

Mas, um falar que precede as significações e que, justamente por isso, explode sensorialmente.

Talvez os sons produzidos pela artista estadounidense Meredith Monk também voltem a ecoar nos ouvidos de alguém do público, como retornou nos meus… e junto dela, a mesma sensação de “agradabilíssimo” que podemos experimentar nessa beira antes da música ou da fala ser “uma grande coisa”. Não se pode viver isso nessa obra sem ser sutilmente conduzido por um desenho dramatúrgico que nos leva nessa aparente travessia, que na verdade, é um posicionar-se no limite. A consciência da velocidade permite que a coisa se transcorra sem a ansiedade das conclusões. Uma quase imperceptível relação entre início, meio e fim, pela similaridade entre as “cenas”; ao mesmo tempo em que se vive uma concreta transformação de percepção acerca dessas imaterialidades em seu percurso. Diria, paradoxalmente, que é também uma obra silenciosa.

Não pretendo encerrar esse texto sem pontuar os momentos de mediação inseridos na própria dinâmica da obra, quando o artista fala diretamente com o público sobre a obra em si mesma, mas ainda dentro da linguagem instaurada; momentos que reorganizam e localizam a experiência com o público de modo poético* - efetiva um encontro em cena. Eu já havia falado isso ao Leonardo, em outro momento, sobre sua capacidade de falar sobre sem explicar. Talvez, precisemos ensaiar mais para alcançar essa mesma habilidade e voltar a pensar sobre as mediações, não mais como práticas apartadas da obra.

 

*“Poesia é todo o texto no qual não está escrito a sua leitura”. (Eduardo Del Estal)

 

 

FICHA TÉCNICA de "Beira".

Criação, direção, composição coreográfica e sonora: Leonardo França
Assistência de direção e dramaturgia: Alana Falcão
Saxofone e live eletronics: Paulo Pitta
Direção musical: Leonardo França e Paulo Pitta
Câmera: João Rafael Neto
Operação de luz: Ivonei Santana

 

Este é um texto crítico sobre o obra em dança "Beira" do artista Leonardo França (BA), assistida através da filmagem realizada e disponibilizada em 2025.

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