A Sublimação da Margem

Por Heloísa Sousa
08/03/2025

Esse texto faz parte da cobertura crítica da décima edição do Junta Festival - Dança e Contemporaneidade, realizado em Teresina (PI) entre os dias 15 e 20 de outubro de 2024. O texto é atravessado por discussões com Alana Falcão (Revista Barril, BA), que vem acompanhando o festival como crítica de arte junto da autora desse texto. Para ler os textos críticos de Alana Falcão sobre esse festival, clique aqui.

 

Em 1967, o artista norte-americano Robert Morris cria uma obra, talvez escultórica, nomeada “Steam”, onde uma fumaça constante emerge de um quadrado de rochas posicionado em um campo. Essa obra que se alinhava às ideias de objetos específicos e da arte minimalista na segunda metade do século XX nos EUA foi traduzida como “Vapor”. A materialidade fugidia do vapor adentra, então, o campo imagético da arte desafiando as condições de escultura e de encenação; é algo concreto e notável, mas com movimentos próprios e incontroláveis. Possivelmente, a imagem do vapor adentra o campo simbólico e visual do norte global, com tremenda força, após a Revolução Industrial. E faz isso enquanto fumaça, um índice marcante da força de trabalho operária e, simultaneamente, de sua opressão. É o resíduo, a produção de um desgaste, de uma combustão, um tipo de morte ou esvanecimento. Mas, se direcionarmos o olhar ao sul global, em algumas práticas ritualísticas de povos originários ou ainda nas práticas sincréticas do nosso tempo, podemos enxergar outras simbologias e visualidades para este índice. Partindo de outras formas de aquecimento, esse vapor de menor espacialidade marca alquimias de cura. De um lado, grandes fumaças de queimas poluentes; de outro, pequenos vapores de queimas de limpeza.

Ao escolher como título de sua obra em dança a palavra “Vapor”, o Original Bomber Crew de Teresina (PI), nos indica ficar mais tempo com esse signo e pensá-lo no campo da arte e da vida. Paradoxalmente, o vapor em si, como matéria visível, aparece de modo pequeno e pontual; porque o vapor, nesta obra, parece mais nomear uma estética política que (des)organiza os referenciais de uma dança e de um corpo posto à margem. Tudo o que vemos em cena é bastante sólido - mesmo que se fale das águas e mesmo que haja tinta, elas não escorrem. As matérias estão ali com suas tridimensionalidades em um devir-vapor. Em um instante podem não mais estar. Penso então em sublimação. Aí as coisas se tornam mais complexas. Na realidade, fumaça e vapor, embora desenhadas em nosso imaginário como formas semelhantes, não são a mesma coisa e se diferem também pelos impactos negativos ou positivos que causam no ambiente e nos corpos. A fumaça é suja, o vapor é limpo. 

Ao pensar em sublimação, podemos imaginar o processo de aquecimento que faz com que os sólidos transitem ao estado gasoso, sem passar pelo líquido. Aqui, podemos criar paralelos com as cenas marginais do circuito das artes cênicas no Brasil. O que o OBC compõe, sob a direção sagaz de Allexandre Bomber, é uma absurda atualização das composições cênicas na Região Nordeste, escapando totalmente dos estereótipos da margem e do eixo, criando uma linha tangente que produz uma cena de destacável singularidade e que faz vibrar nosso território como epicentro. Com uma sofistação dramatúrgica e procedimental, esses artistas criam uma obra que manifesta o chão de Teresina como ponto original e paradigma histórico, desviando radicalmente das formas com as quais algumas cenas contemporâneas do Nordeste espelham as imagens do eixo. Isso desenha o OBC como uma grupalidade que consegue promover uma guinada histórica na cena deste país, a partir de um território específico (afinal, já compreendemos a ficção dos universais, certo?). Voltando ao paralelo da sublimação, ao invés de aquecer a solidez do nosso chão ao estado líquido, palatável e maleável aos recipientes do eixo; o grupo aquece esta solidez marginal até alcançar diretamente o estado gasoso, um vapor incapturável e translúcido. Aquilo que se espalha e turva.

Esse incapturável também se dá o direito de desaparecer - no sentido do jogo entre a aparição e a desaparição - o que diverge da lógica do apagamento. O desaparecimento aqui é um gesto de autonomia e de preservação de si como algo opaco ou translúcido, um dar-se a ver a partir dos nossos desejos e não das arbitrariedades do outro. Já o apagamento como gesto de opressão, promove justamente a realidade oposta, da não preservação e da deslegitimação. Se os artistas do OBC criam “Vapor” a partir dos sumiços dados de formas violentas, a linguagem em cena que eles instauram captura o termo como um contra-golpe. Penso sobre isso junto com o crítico de teatro Guilherme Diniz (MG) numa fila durante o MIRADA - Festival Ibero Americano de Artes Cênicas (SP) em 2024, que marcou a estreia de “Vapor”. Assistir a obra pela segunda vez durante a programação do Junta Teresina, um mês depois, confirmou as percepções que já se desenhavam fortemente mesmo diante das instabilidades de uma estreia. A ordem acontecimental e de apresentação em “Vapor” é tão forte que o desejo de encontrar a obra sucessivas vezes nasce dessa espectação. O contra-golpe é tão eficiente que a vaporização promovida pela obra, mesmo tornando visível ausências a partir da lida com os vestígios, as marcas, as sombras que ficam do que desaparecem, não elabora um afeto de despotencialização (no sentido espinosano), mas sim um afeto de engrandecimento, de pertencimento e de comunhão.

Quero dizer então, que é notável como o OBC inventa uma linguagem em dança - assumindo aqui todas as crises e embates que o termo linguagem trava com a arte - que eles nomeiam como Dança-Quebrada. A obra apresenta algo que não se enquadra nos processos comuns de significação, não há uma narrativa a ser compreendida e repetida, e mesmo a noção de desenvolvimento aqui opera fragmentação e descontinuidade. Se pensarmos como o filósofo argentino Eduardo Del Estal, podemos afirmar que o OBC cria uma obra para os quais o centro/eixo não possui significantes para traduzi-lo e isso pode estruturar uma impressão de “não entendimento” ou fazê-los encontrar termos que possam caracterizar ou categorizar o trabalho do grupo de modo equivocado. Mas, há algo de comum entre cidades do Nordeste que torna vibrante o que eles dançam e é totalmente plausível ao nosso olhar. Há um mistério e um comum nesse vapor - que também ecoa em obras de outros artistas da dança no Nordeste como a Cia. dos Pés (AL), Alexandre Américo (RN) e Flávia Pinheiro (PE). 

Em diálogos críticos truncados que buscam posicionar palavras, sem isenção dos gestos de poder em torno dessas enunciações, já ouvi qualificarem esta obra a partir da ideia de precariedade. Não são incomuns as tentativas de nomear cenas do Nordeste como alinhadas às noções de precariedade ou gambiarra, ambas noções que partem de uma percepção de escassez. Mas, como nomear precária a cena do OBC diante de tanta abundância? Seria a composição de um chão cênico por placas de papelão, geometricamente posicionadas, mais precário do que um linóleo branco sob o palco? Mesmo que esse primeiro exija uma artesania de montagem muito mais demorada e rebuscada? Porque as cenas em dança de Eduardo Fukushima, artista paulistano da dança, não são nomeadas do mesmo modo, mas sim creditadas como minimalistas? O que é, de fato, precário? A materialidade ou os valores atribuídos a elas? E quem atribui esses valores?

Onde o centro vê precariedade, em suas lógicas fetichistas; nós vemos realidade. Não nos falta matéria, nem vida e nem o Real em si. O que nos falta é acesso aos recursos que nos economizaria tempo. 

A composição cenográfica apresenta-se em instalação e faz sobrepôr diversas paisagens por articulação dos objetos trazidos à cena, tendo sempre ao fundo essa cor amarronzada do papelão - como areia - apagando radicalmente o preto convencional das caixas cênicas ou o branco das galerias; uma fuga da experiência dos espaços institucionalizados também pelas cores. Esse gesto afirma o corpo artista como criador dos espaços e não apenas efeito dele.

“Vapor”, segundo os artistas criadores, refere-se à gíria usada nas quebradas para dizer dos jovens que morrem pelos sistemas sociais, ao mesmo tempo em que seus pagamentos são naturalizados. Na contramão das narrativas solipsistas que marcam parte da dança contemporânea brasileira, o OBC afirma comunidade e coletividade. São sete artistas em cena, todos homens, Allexandre Bomber, César Costa, Javê Montuchô, Malcom Jefferson, Maurício Pokémon, Phillip Marinho e Vini Nex, que dançam e escrevem a comunidade em um ponto de enaltecimento. Diferente da herança colonizada que reafirma que só existe o “eu e suas sensações”, nessa obra, os afetos são partilhados e entoados em conjunto. Mas uma comunidade que não afirma coro, e sim convivência de singularidades. Os figurinos materializam isso ao promover ocultações de rostos, sobreposição de camadas e cores de peças de roupas do contexto urbano e trabalhador; cria-se mais uma camada de algo “comum”.

A sofistação dos procedimentos de criação aparecem na própria tessitura dramatúrgica. As estruturas do cotidiano e da cultura são quebradas e suas partes reorganizadas em cena como fragmentos e repetições que articulam a realidade em outra ordem, mas sem nenhuma aleatoriedade. É isso que faz com partes do break, da capoeira, do coco consigam emergir como breves estruturas na coreografia com traços de improvisação. Essas composições em outra ordem, operação própria da arte, permite que a gente observe o Real através de outras paisagens desautomatizadas - quase o mesmo que vemos numa Guernica do Picasso, mas sem a fissura pelas geometrias. É o que faz tornar visível o paralelo entre o pixador e o pescador. Essa dança desestabiliza e alarga a relação temporal, pois não promove o desenvolvimento convencional, apenas o acontecimento em si, sem preocupação de eficiência ou evolução. Tanto que a expectativa do fim se dilui quando o espectador se permite adentrar na obra, pois se não há encadeamentos, o fim é apenas um ponto de encontro e não uma consequência.

Não terminaria este texto sem destacar a sonoridade composta e executada pelo artista Javé Montuchô que preenche o espaço em um nível de presença cênica extraordinária e incomum nos espaços em dança. Montuchô dispõe seus instrumentos a partir do mesmo alfabeto cenográfico da obra e vai preenchendo de musicalidade até invadir o espaço de cena com seu corpo como instrumento em si. A canção final é um corte profundo na memória, materializa o discurso e o desejo do trabalhador posto à margem pelo projeto violento do sistema econômico, mas também posto em risco pela própria interação com a natureza. Nesse ponto, uma dialética se abre feito fenda entre o gesto de quem lança a rede ou de quem cobre um corpo morto, a depender daquilo que nos olha.

 

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