Por Diogo Spinelli
09/03/2017
Nos dias 03 e 04 de março de 2017 ocorreram as últimas apresentações do espetáculo Amareelos, na Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte. A obra, espetáculo-solo da atriz mexicana Rocio Tisnado, resulta do apurado prático das questões abordadas pela intérprete em sua pesquisa de mestrado, recém-defendida no Departamento de Artes da UFRN. O espetáculo é uma produção do Arkhétypos Grupo de Teatro, e marca também a primeira incursão de Nadja Rossana, artista potiguar e integrante do Arkhétypos, como diretora.
A partir dessas poucas observações sobre o espetáculo já surgem dois apontamentos interessantes a serem destacados quanto à produção cênica atual de Natal: o primeiro deles diz respeito à geração de resultados cênicos vinculados a pesquisas acadêmicas (sendo a recíproca também verdadeira, vide os trabalhos de conclusão de curso apresentados ultimamente e que têm como base a análise de processos de criação), e de como vem se consolidando esse entrelaçamento entre as produções universitária e teatral em nossa cidade; já o segundo, é relativo ao positivo crescimento da participação feminina na função de encenadora na cena natalense contemporânea. Ao experimentar-se nessa função, Nadja associa-se a um grupo que já conta com as presenças marcantes de Carla Martins, Lina Bel Sena, Ana Cláudia Viana e Marcia Lohss, dentre outras, e que dentro em breve deve ser reforçado por Heloisa Sousa com a estreia de Tratados de mim mesma na infertilidade, prometida para o segundo semestre desse ano.
Amareelos é uma obra que propõe diversos deslocamentos para o espectador, como se refizéssemos, de modo oposto, os deslocamentos realizados por Rocio em sua pesquisa e no trânsito entre as culturas do México e do Brasil. Um primeiro deslocamento é proposto pela forma híbrida do espetáculo, pois se de início esta apresenta-se majoritariamente coreográfica (cabendo salientar a importância das músicas criadas por Igor Barboá e Francisco Jr. para a obra), aos poucos vai se permeando de elementos que poderiam ser identificados como pertencentes à demonstrações de processo, espetáculos teatrais, e contações de histórias.
Outro deslocamento provocado pela obra é aquele relativo ao trabalho corporal de Rocio, que propõe, principalmente no início do espetáculo, movimentos corporais que sugerem certa ancestralidade e antropozoomorfismo – característica presente nas mitologias ameríndias que permearam as pesquisas de criação da obra. Esse corpo, híbrido ele também, remete tanto à própria linguagem do espetáculo como à língua utilizada pela intérprete no decorrer da obra (e que propõe mais um deslocamento para o espectador): há uma alternância entre o português com sotaque hispânico, o espanhol propriamente dito, e línguas nativas (ou a imitação delas). É nessa mistura de linguagens e de línguas que Rocio nos conta, sentados ao longo de um corredor no qual existe um tapete que emoldura o formato de um infinito, trechos de narrativas que não necessariamente se concluem, mas que sugerem uma cosmogonia entre sonho e realidade.
A obra compõe-se de fios soltos, fragmentos do processo corporal, memorial, onírico e epifânico da intérprete em seu processo de (re)encontro identitário com a ancestralidade ameríndia. Como em um labirinto – imagem suscitada em um dos textos proferidos – ainda que possam vir a constituir um universo coeso, as partes desse cosmo a que temos acesso muitas vezes apresentam-se de modo cifrado para os espectadores, a espera de que façamos nossas ligações e interpretações sobre os trechos apresentados de modo pessoal, não havendo um elemento agregador ou um leitmotiv que sugira uma linha narrativa mais clara.
Dentre os fragmentos apresentados, um em específico falou mais diretamente a mim. Em determinado momento, alternando entre português e espanhol, Rocio pergunta a si mesma e a nós: O que significa ser do Sul? Qué significa ser del Sur?
Nesse momento, me deparei com o quão significativo era ver aquela atriz mexicana em solos brasileiros buscando reconhecer e reencontrar nossas tradições, nossos corpos, nossas vozes, nossas histórias. Há poucos dias tive a oportunidade de acompanhar algumas murgas - manifestações cênico-musicais do carnaval uruguaio - que, distintamente da maior parte das nossas manifestações carnavalescas, possuem, através do humor, um caráter político explícito. Uma delas, chamada La Gran Muñeca, tinha como parte de seu enredo os Libertadores da América, e em determinado trecho trazia à tona que numa era como a nossa, com a retomada da direita (democraticamente ou não) ao poder e a eleição de Trump, e na qual discute-se a criação de muros que nos separam, será cada vez mais preciso que a América Latina se una novamente.
Esse momento veio forte à minha lembrança quando do questionamento de Rocio. Do universo que espio em Amareelos, levo principalmente a lembrança e o chamado de que, mais do que nunca, é tempo de darmos as mãos, e de nos reconhecermos, brasileiros, como latino-americanos.
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Ficha Técnica Amareelos:
Direção: Nadja Rossana
Atriz: Rocio Tisnado
Música: Igor Barboá e Francisco Jr.
Produção: Hianna Camilla