Por Heloísa Sousa
31/03/2017
O Arkhétypos Grupo de Teatro, projeto de extensão vinculado a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenado pelo Prof. Dr. Robson Haderchpek, vem se configurando com um espaço de pesquisa e experimentação das potencialidades ritualísticas e míticas do teatro unindo as práticas de discentes, docentes e da comunidade externa à instituição da qual faz parte. Este ano, o grupo estreia o espetáculo solo “Amareelos” com atuação da mexicana Rocío Tisnado e a estreia de Nadja Rossana na direção. É importante destacar que esta obra se relaciona com a pesquisa de mestrado desenvolvida pela intérprete no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN, intitulada “O Sul Corpóreo: Práticas Teatrais Interculturais para a Descolonização do Imaginário” e orientada pelo coordenador do Grupo Arkhétypos citado acima.
Ao adentrarmos a sala da Pinacoteca do Estado onde a encenação aconteceu, nos deparamos com uma construção espacial diferente do que é comumente percebida em outros espetáculos que transitam por Natal e ainda mais nos que se apresentam como um solo. Um grande símbolo do infinito cobre a maior parte do chão e delimita o espaço cênico da intérprete, junto com alguns poucos elementos cênicos dispostos nas extremidades desta marcação, mas que não apenas servem á manipulação, antes disso servem às possibilidades de “ocupação” do corpo da intérprete. Devo destacar que essa proposta já instaura outra expectativa no público, permitir que um só corpo em cena consiga se relacionar com uma configuração espacial tão extensa é um desafio. A iniciativa de desviar das propostas recorrentes em solos - onde a cenografia constrói espaços pequenos e limitados na tentativa de potencializar o corpo em cena e de reforçar sua solidão criativa - é relevante. Neste espetáculo, as artistas conseguem criar o oposto e enfatizar uma relação coerente entre corpo e espaço, reforçando a “pequenez” da intérprete diante da imensidão do mundo que habita, exigindo assim uma força de expansão e expressão muito maior para ocupar todo esse território.
A encenação se dá a partir do cruzamento entre as linguagens da dança, teatro, poesia, música, performance. Talvez esse hibridismo em cena seja tão recorrente que se torne redundante falar sobre isso. A realidade da criação cênica contemporânea evidencia a insatisfação do sujeito-corpo criador para com as fronteiras e conceitos imutáveis; passamos a criar a partir daquilo que desejamos e nos expressar com as possibilidades corporais, espaciais e temporais que estiverem disponíveis sem nos preocupar com o reconhecimento de nossa obra dentro de padrões estéticos pré-definidos.
Juntas, a intérprete mexicana Rocío Tisnado e a encenadora brasileira Nadja Rossana, trazem para a cena uma poética intercultural construindo narrativas, imagens e movimentos que remetem aos rituais, mitos e figuras arquetípicas dos povos ameríndios e nos permitem reencontrar com nossa ancestralidade colonizada e dizimada. A nossa ignorância diante da cultura indígena que formou nosso continente americano antes da chegada invasiva dos europeus é absurda. Se em nossa trajetória de jovens alunos reféns do sistema educacional formal e limitado de nosso país, somos privados de uma reflexão coerente sobre a presença dos povos indígenas em nossa história/cultura, será – talvez – nas experiências artísticas que possamos nos reencontrar com ela e repensar a nossa formação enquanto sujeitos.
Apesar da construção dramatúrgica confusa, a encenação se afirma na presença cênica da intérprete, que através de treinamentos e técnicas adquiridas na capoeira e na dança contemporânea, desenvolve uma consciência corporal muito potente; além das narrativas enunciadas entre o português e o espanhol, e das imagens criadas nas interações entre o corpo e os objetos dispostos. O uso do caos, da aleatoriedade e da colagem de cenas e movimentações tem se tornado um recurso utilizado continuamente nas encenações contemporâneas que desvia da linearidade das dramaturgias clássicas. No entanto, perceber qual a finalidade ou consequências interpretativas do caos é necessário para se construir uma interação entre artista e espectador que favoreça a experiência cênica.
E então, tem as mulheres. E elas criam, se desafiam, se rasgam, se abraçam e se agradecem no final deste espetáculo. E eu, tenho estado especialmente sensível demais para com a potencialidade feminina. E isso muda tudo.
Rocío Tisnado traz em sua pesquisa – e convida Nadja Rossana a participar dela – uma proposta de integração entre a cena, o processo criativo e as epistemologias do sul. Remetendo ao que foi elucidado pela própria pesquisadora ao defender seu trabalho, a cena em sua construção ocidental foi orientada pelos conhecimentos dominantes e colonizadores da Europa/América do Norte enquanto que as demais manifestações eram marginalizadas. Afinal, aprendemos que o teatro surgiu na Grécia, não é mesmo? Não é mesmo.
Apontar para as epistemologias do sul significa também nos direcionar para as práticas e pensamentos marginalizados, descaracterizando a falsa impotência das ditas minorias. E desse lugar de fala, preciso destacar o fato da direção deste espetáculo ser assinada por uma mulher. Esta criação perpassa as pesquisas e vivências de duas mulheres que no trânsito entre México e Brasil descobrem as potencialidades entre culturas em seus próprios corpos e nos daqueles que cruzam suas trajetórias. Esse lugar de afirmação da mulher como encenadora é fundamental, não só por este espaço ter sido predominantemente masculino na história do teatro, mas também pela possibilidade de se refletir sobre a presença das mulheres na cena, nos projetos, na técnica, na montagem. Talvez, a epistemologia do sul também seja feminista.
Direção: Nadja Rossana.
Atuação: Rocío Tisnado.
Música: Igor Barboá e Francisco Jr.
Produção: Hianna Camila.