Por Heloísa Sousa
14/04/2017
Já havia assistido ao espetáculo “Jacy” do Grupo Carmin (RN) há uns anos atrás, durante a programação de uma das edições do Festival O Mundo Inteiro é um Palco idealizado pelo Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN). Lembro-me de na época desconhecer o termo teatro documental, mas de ter percebido o espetáculo com uma abordagem contemporânea não tão recorrente na cidade e que me interessava muito. Na ocasião, “Jacy” não era tão conhecido quanto hoje, me recordo de ter ido ver o espetáculo por indicação de uma colega que tinha tido a oportunidade de conhecer um pouco do processo de criação desta obra. Depois de ser merecidamente contemplado com o Palco Giratório do SESC, viajado por dezoito cidades brasileiras, ter se apresentado em importantes festivais nacionais – entre eles, o Cena Contemporânea de Brasília (DF), além de ter feito temporadas de apresentações em capitais como São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ) com direito a diversas críticas de renomados profissionais dessas cidades; “Jacy” retorna a Natal (RN) com uma temporada durante o mês de abril/2017 na Casa da Ribeira. Vale salientar que esta temporada também se configura como uma alternativa para arrecadar verbas que poderão contribuir para a montagem da nova encenação do grupo, intitulada “A Invenção do Nordeste”, com direção de Quitéria Kelly.
Houve um tempo em que muitos nordestinos necessitavam migrar para as capitais da região Sul ou Sudeste a fim de conseguir emprego, ter melhores condições de vida ou ainda ter seu trabalho reconhecido. A possibilidade de trabalhar ou se aperfeiçoar em capitais como Rio de Janeiro e São Paulo traziam destaque para esses profissionais quando retornavam a sua cidade (N)atal. Era preciso ter seu trabalho e/ou pesquisa reconhecidos fora de sua região para ganhar alguma visibilidade. Ainda bem que mudou, não é mesmo?
Em cena, os atores Quitéria Kelly e Henrique Fontes contam – literalmente – não só a história de Jacy, mas também a história de Natal e do processo de criação desta montagem. Jacy, por sua vez, foi uma mulher potiguar que viveu no período da Segunda Guerra Mundial, migrou para o Rio de Janeiro e retornou a Natal onde passou seus últimos anos de vida. Essas informações vieram até o grupo, após o ator e diretor Henrique Fontes encontrar uma frasqueira jogada no lixo, contendo vários pertences de Jacy. A partir daí, surgem inúmeras possibilidades de histórias, versões, pontos de vistas, realidades e ficções.
Os atores contam essas histórias entrecruzadas com uma informalidade e objetividade que contribuem para que o espectador permaneça atento durante toda a encenação; é quase impossível desviar a atenção do que é posto em cena. Mesmo com a recorrência – exaustiva – de alguns elementos na cena documental como o microfone, a projeção, a abordagem e as aparências corporais cotidianas; o Grupo Carmin consegue desviar da linearidade visual e construir cenas que aguçam e atraem a percepção do espectador. E neste sentido, a presença do cinegrafista Pedro Fiuza se torna uma das escolhas mais interessantes na encenação, representando um corpo-ruído capturando, construindo e exibindo imagens em tempo real durante o espetáculo.
Em alguns momentos da encenação, penso que conseguiria facilmente substituir o nome Jacy por outros do meu cotidiano. Tenho até receio de pensar que poderia substituir pelo meu próprio nome. Porque em “Jacy” percebemos uma crítica ao potiguar, ao coronelismo enrijecido na política deste estado e nossa inércia diante disso, ao tédio, à desvalorização de nossa história e cultura. Nada ou pouca coisa muda, tudo que se constrói por aqui, se perde em algum momento. Natal é o próprio mito de Sísifo, onde nós somos, simultaneamente, os deuses e o homem desta narrativa.
O mito de Sísifo é narrado por Albert Camus em um ensaio filosófico escrito em 1941, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Diante da repetição, da inércia, do tédio e da falta de esperança, perguntam a Camus se essa situação absurda deveria nos encaminhar para o suicídio. Camus responde que não, ao contrário, deveria nos encaminhar para a revolta.
Segunda crítica que escrevo com o mesmo final.